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Sabores da terra e do mar, segundo José Avillez

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Picture 1.png 

Manhã de Outono na Praia do Guincho, próximo de Cascais. Não é fácil de explicar que no Sudoeste da Europa, em plena costa atlântica (e não no mediterrâneo), há um lugar assim. Um lugar onde em Novembro, após uma noite de chuva intensa, o sol brilha, o vento pára (como não acontece no Verão) e a temperatura chega aos 20 graus. A cena passa-se numa zona especial, uma reserva natural a menos de 30 quilómetros de Lisboa, onde o mar agitado, as dunas de areia e a Serra de Sintra se fundem num cenário único. Não admira que o lugar seja um ponto de referência e de inspiração para José Avillez. O chef português viveu a maior parte da sua vida na quinta dos avós, a menos de três quilómetros. Passeamos pela praia enquanto recorda, em elipse, algumas memorias de infância: de como a quinta era praticamente auto-suficiente, das festas abertas à comunidade, do vinho “razoavelmente mau” que avô fazia, ou de quando, aos dez anos, vendia bolos com a irmã (“foi o negócio mais rentável que já tive, porque era a minha mãe que pagava os ingredientes”).

 

Avillez ainda mantém uma unidade de catering em Cascais mas há cinco anos que vive e trabalha no elegante bairro do Chiado, em Lisboa, onde é sócio e chef dos restaurantes, Cantinho do Avillez e Belcanto. Os últimos tempos têm sido extenuantes e o rosto deixa transparecer algumas marcas do cansaço. Implementar com sucesso dois restaurantes em menos de um ano, agilizar processos, manter uma equipa motivada, atender às solicitações constantes (dos parceiros, dos media...), dar atenção à família e ainda ter tempo para parar, reflectir e criar, não deve ser fácil.

  

É por isso que Avillez dá valor a pequenos momentos como este. “Estava a precisar. É muito retemperador vir ao Guincho”, confessa. Saltamos a protecção do extenso passadiço de madeira que liga a estrada à praia e chegamos a um pequeno bosque. O mar está perto mas não se vê, apenas se houve a rebentação. “Eu ouvia constantemente este som lá em casa”, refere. Também não fica indiferente à pequena extensão de terreno verdejante ou ao aroma a terra húmida, madeira molhada e fagulhas caídas dos pinheiros. Apanho um trevo e questiono-o: “porque não tens um prato com estas ervas? Está muito na moda!”. Sorri com a provocação, mas não dá grande troco. Avillez é um cozinheiro contemporâneo sempre atento às novas tendências, mas procura seguir o seu caminho. É informal no trato e na pose, mas não é o chef ‘super cool guy’ de braços tatuados que ao encontrar um coelho, o mate, esfole e o cozinhe mesmo ali, juntando umas raízes e umas ervas do campo. Por isso não tem um prato com oxalis ou com outras ervas do género, nem seja um colector ao estilo dos novos nórdicos. Ainda assim não deixa de ser um naturalista, no sentido figurado do termo, conforme se pode verificar em alguns dos seus pratos mais emblemáticos, como ‘paisagem alentejana’, ‘rebentação’, ‘no bosque depois da caça’, ‘mergulho no mar’, ou ‘Cabo da Roca’. “O mundo exterior e o mundo interior são fontes inesgotáveis de inspiração. A natureza e, em especial, as paisagens são uma das minhas principais fontes de inspiração”, afirma. Uma inspiração que também pode surgir “de uma memória, de um sabor, de uma textura, de uma viagem, de uma música, de um filme, de uma conversa, de uma técnica ou, até mesmo, de uma emoção”, acrescenta.

 

Picture 8.png'rebentação'

 Picture 3.png'no bosque depois da caça'

 

Picture 5.png'mergulho no mar'

Picture 9.png'Cabo da Roca'

 

José Avillez não fez o percurso clássico das escolas de hotelaria ou de cozinha. Esteve para ser arquitecto mas, por influência de um primo, formou-se em Comunicação Empresarial. Porém, a sedução pelo mundo da cozinha foi mais forte e começou a ganhar forma quando, prestes a terminar o curso, conheceu e manteve um contacto próximo com José Bento dos Santos, “o maior entendido sobre gastronomia em Portugal”, e Maria de Lourdes Modesto, “a maior especialista em Cozinha Tradicional Portuguesa”.

 

Pouco depois surgiu a hipótese de estagiar na Fortaleza do Guincho (sempre o Guincho!). Logo no primeiro dia, ao entrar na cozinha deste restaurante francês (1 estrela michelin) que tem como consultor, Antoine Westermann, deu-se o ‘click’ que lhe faltava: “o meu coração disparou e senti uma emoção enorme. Nesse momento percebi que tinha encontrado o meu caminho e comecei a minha aprendizagem na cozinha”. O seu percurso levou-o à escola de Alain Ducasse e, posteriormente, a um estágio na cozinha de Eric Frechon, no Hotel Bristol, em Paris. Contudo, o que mudaria a sua forma de pensar e de actuar enquanto cozinheiro foi quando, em 2007, teve a oportunidade de efectuar outro estágio, desta vez no El Bulli, de Ferran Adriá, onde passou 6 meses, tendo chegado a integrar a equipa de criatividade. Para trás ficara a sua primeira experiência no comando de um restaurante (em parceria com um ex-colega com quem trabalhara no Guincho) e a empresa de catering que criara.

 

Quando regressou a Portugal recebeu o convite para chefiar a cozinha do Tavares, em Lisboa. A responsabilidade era grande. Tratava-se de um dos mais antigos restaurantes de luxo da Península ibérica, que ainda por cima atravessava um período conturbado. Levantaram-se vozes a dizer que lhe faltava preparação para o cargo e que estaria a dar um passo maior do que a perna. Avillez, provou o contrário e rapidamente tornou o Tavares numa referência gastronómica. Um ano depois, em Novembro de 2009, alcançaria o que nenhum outro chef conseguira neste mítico restaurante: uma estrela Michelin – que por coincidência chegou praticamente em simultâneo com a publicação do livro, ‘Coco: 10 World-Leading Masters Choose 100 Contemporary Chefs’, da Phaidon, em que foi um dos dez chefs indicados por Ferran Adrià.

 

Porém, em Janeiro de 2010, em desacordo com os proprietários, o chef português tomava a decisão de sair. Regressaria à frente de um restaurante, em Setembro do ano seguinte, com o Cantinho do Avillez, um espaço informal de cozinha mais simples, enquanto remodelava outro restaurante emblemático da cidade, o Belcanto, onde prossegue hoje com a sua cozinha de autor de inspiração portuguesa.

 

Quando entramos no Belcando, junto a uma pequena zona de estar, deparamo-nos com uma estante de livros. À noite, quando iluminada, destaca-se uma frase: “Para ser grande sê inteiro”. Trata-se de uma intervenção da artista plástica, Joana Astolfi a partir de um poema de Fernando Pessoa, poeta que José Avillez gosta de evocar como uma das suas referências. Do espaço antigo ficaram algumas memórias. No entanto a renovação deu-lhe uma maior leveza e sobriedade, dentro de um estilo clássico contemporâneo. Entre a sala principal, onde se sentam confortavelmente 23 pessoas, e a sala de fumadores (com 15 lugares) fica a cozinha, com janela aberta para o corredor. Lá dentro, num espaço exíguo, mas funcional e bem equipado, laboram 12 cozinheiros, quase todos jovens, como a equipa de sala, com uma média de idades que não ultrapassará os 30 anos. Uma boa parte do grupo trabalha junto há vários anos e entre eles destaca-se David Jesus, braço direito e chefe operacional de Avillez, a quem cabe uma quota parte de responsabilidade na solidez e bom desempenho do restaurante.

 

Na fase que se seguiu à abertura do Tavares, José Avillez surpreendeu com uma cozinha de perfil mais vanguardista que, com a excepção de Leonel Pereira - no restaurante Panorama, Hotel Sheraton Lisboa - ninguém fazia na cidade, ou mesmo em Portugal. Foi esta, talvez, a sua época mais influenciada pelas novas técnicas e por alguns dos principais chefes espanhóis. No entanto já nessa altura as suas propostas tinham identidade própria, uma característica que se destacaria de forma mais premente nos primeiros menus do Belcanto, onde juntou criações totalmente novas, com uma ou outra antiga e algumas que evoluíram de propostas anteriores. A estratégia parecia clara: mais do que entrar em grandes ousadias, Avillez, procurou sobretudo ter uma cozinha sólida, consistente e com personalidade.

 

Há quem valorize este amadurecimento e há, também, quem gostasse de o ver criar mais. Contudo, apesar da determinação em querer superar-se, José Avillez mostra-se satisfeito com os resultados obtidos. E tem razões para tal: passados poucos meses após a abertura, os conservadores inspectores do Guia Michelin atribuíram-lhe a tão cobiçada estrela. Além do mais as reacções têm sido muito positivas, quer por parte dos clientes, quer por parte da critica, ou ainda de colegas seus, como Andoni Aduriz, do Mugaritz, que publicamente lhe teceu largos elogios.

 Picture 6.png'leitão revisitado'

Picture 7.png'tangerina'

 

Uma refeição no Belcanto – à carta ou em menu de degustação – é um momento de prazer, com direito a vários ‘wow! factors’, empratamentos elegantes, conjugações inspiradas, produtos trabalhados de forma exímia e viagens através dos sabores. É possível que nos sintamos num ‘bosque depois da caça’ , perante o cremoso e escabeche de perdiz; ou a dar um ‘mergulho no mar’, ao degustar o robalo com algas e bivalves, ou a sentir a ‘rebentação’ do mar do Guincho enquanto mastigamos uma gamba da costa junto com um berbigão, areia de algas, e sumo de maçã verde texturizado. Porém mesmo quando os nomes não remetem para lugar algum, ou indiciem referências, a conjugação de sabores não deixa ficar a perder. Prove-se o ovo a baixa temperatura com pão crocante de ´A horta da galinha dos ovos de ouro’, o ‘Leitão revisitado’ - que remete para um prato típico português, da Bairrada - ou a ‘tangerina’ para perceber o que quero dizer.

 

José Avillez já provou que não é de ficar a dormir sob o êxito alcançado. Ele tem talento e determinação para continuar a motivar uma equipa, pesquisar, reflectir e ir mais longe. Mesmo com todas as solicitações e com a pressão do negócio em tempos adversos - talvez porque saiba, lá no fundo, que o Guincho fica mesmo aqui ao lado.

 

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Texto escrito em Novembro de 2012 e Publicado em Abril de 2013 na revista italiana Cook_Inc. No essencial o texto mantem-se actual, 'apenas' aumentou o número de restaurantes e de estrelas Michelin de Avillez. As fotos são de Paulo Barata.

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