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Alegria portuguesa em Marbella

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Algum dia tinha que ser. Há 15 anos que acompanho profissionalmente o anúncio do guia Michelin  Portugal, desde os tempos em que parecia que as cobiçadas estrelas só estavam ao alcance de chefes estrangeiros a trabalhar por cá, com uma ou outra excepção para a cozinha "típica", e nunca me senti tão satisfeito quanto na noite passada. Já tinha havido alegrias e surpresas agradáveis, mas quase sempre acompanhadas por desilusões e perdas de estrelas para as quais não encontrava explicações. Desta vez não, desta vez tivemos a consagração de José Avillez, a justiça finalmente feita a Leonel Pereira e a surpresa muito agradável de Pedro Lemos. Três chefes não só de nacionalidade portuguesa, mas também, cada um ao seu estilo, cada um no seu ponto do País, cada um a arriscar em projectos próprios, a reflectir no seu trabalho os produtos e as memórias da nossa cozinha. Nada portanto de estrelas burocráticas para hotéis de muito luxo e pouca alma, mas sim um reconhecimento  da cozinha que se desenvolveu em Portugal neste início de século por parte de um guia que continua a ser a mais prestigiada referência mundial do sector.

 

Foi por isso uma noite mágica, vivida no esplêndido hotel Los Montanares (que curiosamente inclui bolos de arroz no pequeno-almoço, com o papel em português e tudo...), nas amenidades do clima andaluz, com muitas conversas em torno da piscina ou na varanda sobre a praia. Entre esses encontros, um muito interessante com os irmãos galegos Cancela - que fazem questão de se apresentar nos cartões de visita como sendo de Carballo, a que se segue o sinistro "Costa da Morte"  entre parênteses - verdadeiros especialistas em guias e estrelas Michelin, não só de Espanha, mas de todo o mundo, como se pode ver aqui, que o fazem por, segundo dizem, terem "espírito de coleccionador".

 

Pois nesse encontro e recorrendo aos smartphones para confirmar, desfez-se um dos grandes equívocos da noite: o primeiro chefe português a receber duas estrelas não foi José Avillez, mas sim aquele ou aqueles que trabalhavam no Escondidinho, no Porto, que as conquistou em 1936. O restaurante, fundado em 1931, na Rua Passos Manuel, 142 (em frente ao Coliseu) manteve a distinção até 1939, data em que o guia, devido às agruras dos tempos da Guerra Civil espanhola, deixou de se publicar. Portanto, nem algarvios nem lisboetas, foram os portuenses os primeiros a terem duas estrelas em Portugal, algo que a que o restaurante, que existe até hoje, parece não dar valor ou sequer mencionar, pelo que percebi numa rápida consulta ao seu site.

Então muito jovem, o rei de Espanha, D. Juan Carlos, foi um dos numerosos clientes ilustres do Escondidinho, o primeiro duas estrelas de Portugal- (Fotografia do site do restaurante)

 

E é também através do site dos irmãos Cancela que fico a saber que as primeiras estrelas dadas a restaurantes portugueses datam de 1929 (ano que também foram dadas pela primeira vez a restaurantes espanhóis, assim como as duas estrelas do Escondidinho foram coincidentes com a primeiras para Espanha, o que mostra que na época não havia as grandes diferenças que hoje existem entre os dois países ibéricos), sendo que a Michelin, fundado em 1900, só as começou a dar, em França, em 1926. Mais uma vez o Norte de Portugal está de parabéns, já que esses pioneiros foram o Hotel Santa Luzia, em Viana do Castelo (será a Pousada dos dias de hoje?) e o Hotel Mesquita, em Vila Nova de Famalicão creio que já desaparecido. Lisboa só teria as suas primeiras estrelas em 1936, no Hotel Avenida e no Chave D'Ouro, ano em que também o Club Naval, em Setúbal, a receberia. Todos estes restaurantes perderiam as estrelas com o interregno da publicação do guia provocado pela Guerra Civil espanhola e pela Segunda Guerra Mundial, que só seria retomado no início dos anos 50. Tivemos que esperar até 1974 para voltar a ter restaurantes estrelados, desta vez em Lisboa, no Michel, do conhecido chefe Michel da Costa.

 

Toda esta história das estrelas Michelin em Portugal, a que os irmãos Cancela chamam "saga", está por sistematizar e não consegui encontrar neste útil site estrelas posteriores, embora saiba que tanto a Casa da Comida quanto o Conventual, ambos em Lisboa, as terão merecido, nos anos 80 e 90, assim como o Portucale, no Porto, e o La Réserve, no Algarve. Era interessante que alguém se dedicasse a este trabalho, que ajudaria a compreender melhor a evolução recente da cozinha em Portugal.

José Avillez a receber a segunda estrela das mãos de Michael Ellis, o director internacional dos guias Michelin. (Fotografia de divulgação)

 

Mas voltando ao tempo presente, mais precisamente à noite passada em Marbella, nem o facto de José Avillez não ser o primeiro cozinheiro português a ter duas estrelas nem o de o Pedro Lemos não ser o primeiro restaurante estrelado do Porto diminui os feitos destes dois chefes. Julgo que José Avillez viveu ontem um dos momentos mais marcantes da sua carreira. Não só por ser o primeiro chefe português contemporâneo a conseguir a distinção ou por ter conseguido que o Belcanto fosse o primeiro duas estrelas de Lisboa de todos os tempos (isso nem o site dos irmãos da Costa da Morte consegue desmentir...), mas porque vê reconhecido o mérito de um trabalho rigoroso e bem planeado, que tudo indica é para ser prosseguido. Por falar nisso, ainda hoje, numa entrevista ao El País, o principal mentor de Avillez, Ferran Adrià, explicava que "tão importante quanto o talento, é uma boa organização, um bom planeamento".

 

"A primeira coisa que fiz foi dar um abraço ao David", disse-me José Avillez, referindo-se a David Jesus, seu "braço direito" no Belcanto, assim que conseguiu uns  momentos de sossego, após ter subido ao palco para receber a distinção, receber parabéns dos seus congéneres de Espanha e de Portugal, entre os quais estavam os também duas estrelas Dieter Koschina (Villa Joya) e Hans Neuner (Ocean), ambos austríacos, e o uma estrela Miguel Laffan (L'And), este natural de Cascais, tal como Avillez. "Como vê, estou calmo, como sempre", brincou, lembrando as ocasiões anteriores, a primeira estrela no Tavares e a primeira estrela no Belcanto, em que lhe tinha dado a notícia via telefone. Creio que esta serenidade, juntamente com a simpatia e boa educação com que trata toda a gente, têm sido fundamentais na construção da sua carreira e da sua empresa, que já detém seis restaurantes e que tem permitido viabilizar financeiramente o Belcanto.

 

Tão importante quanto as duas estrelas agora conquistadas é o facto de o Belcanto ser um restaurante de grande êxito, apesar de não fazer concessões dentro do estilo de cozinha que pratica. "Neste momento, já não conseguíamos arranjar lugares com menos de 15 dias de antecedência, um mês para aos fins de semana", diz Avillez, ciente que daqui para a frente as solicitações serão ainda maiores. Podemos, egoisticamente, não gostar desta enorme afluência, mas a verdade é que ela é muito boa para Lisboa. Nas principais capitais e cidades europeias, restaurantes com estas características contribuem fortemente para uma imagem de dinamismo e modernidade, de que bem precisamos em Portugal.

 

Mais exuberante do que Avillez estava David Jesus, seu cúmplice em todo este percurso de êxito. Entre muitos brindes com champagne, a alegria estampada no rosto, falou-me da renovação da carta do Belcanto, mais de 60% dos pratos (há "clássicos" que não se conseguem substituir, como a "horta da galinha dos ovos de ouro", o robalo "mergulho no mar", a "rebentação", o "leitão revisitado", entre outros), mostrando entusiasmo com o futuro de uma equipa que já está na história da cozinha portuguesa e que julgo ser fonte de inspiração e de aprendizado para os nossos jovens cozinheiros.

Fotografia: Sul Informação

 

Por falar de carreiras inspiradoras, falei também com Leonel Pereira ao telefone, no momento em que a sua difícil estrela estava a ser finalmente anunciada no auditório do hotel de Marbella. Não lhe dei a noticia em primeira mão porque o Público já lhe tinha ligado antes..."Foi uma surpresa, tive que vir a Lisboa para operar um dedo, acabei de sair do hospital, tinha dito ao dono do restaurante para ir para França, para não se preocupar com isto, aos membros da equipa a mesma coisa...", o chefe algarvio não mostrou grande alegria com a distinção que muitos achavam que merecia desde os tempos que brilhou no Panorama, no hotel Sheraton, em Lisboa.

 

A verdade é que só quando há cerca de dois anos foi para o São Gabriel, em Almancil, dando a volta total à cozinha, sem se preocupar com o passado deste restaurante que durante vários anos ostentou uma estrela, Leonel Pereira iniciou o caminho que levaria a que, finalmente, o seu trabalho reconhecido pelo guia vermelho.

 

"Há quatro ou cinco anos, esta estrela teria sido mais importante para mim. Fico satisfeito, claro, sobretudo pelo incentivo que significa para a equipa", diz. Embora me pareça que o São Gabriel e o próprio Leonel Pereira tenha já uma boa clientela, a verdade é que as estrelas têm também um significado económico importante. Que o diga Miguel Laffan, que em Marbella me revelou que, desde que no ano passado o L'And conquistou uma estrela, viu o movimento aumentar em cerca de 40%. Mas o chefe algarvio do São Gabriel, de 44 anos, não parece muito impressionado. "Vou continuar a fazer exactamente aquilo que tenho feito e não vou mudar em nada aquilo que já tenho planeado para o próximo ano". Pois eu diria que faz ele muito bem e até adivinho que é precisamente isso que os inspectores Michelin gostariam que ele fizesse. Mudanças súbitas para lhes tentar agradar raramente dão certo.

Fotografia de divulgação

 

Por fim, a excelente surpresa do Pedro Lemos. É um restaurante que conheço mal, onde estive apenas duas vezes, numa delas num jantar de grupo, há já uns bons anos. Tenho que admitir que na altura não me impressionou grandemente, embora guarde uma memória de correcção geral e de uma refeição agradável (da segunda, no grupo bastante extenso, não me lembro de todo), numa casa muito bonita. No entanto, Pedro Lemos é ainda jovem e bem capaz de ter evoluído, como, aliás, me têm garantido algumas pessoas em quem confio. Além disso, trabalhou com Miguel Castro e Silva, na Quinta da Romaneira, no Douro, se a memória não me falha, e depois foi para a “escola Aimé Barroyer” (tal como David Jesus), no Pestana Palace, e isso normalmente é um óptimo tirocínio. Lembro-me ainda de o ver no Festival do Vila Joya, a aprender e a ajudar, como simples cozinheiro, os chefes multiestrelados que por lá se apresentavam. Fiquei muito bem impressionado com essa atitude. Espero que agora o convidem para ser ele o ajudado…

 

Fico muito satisfeito por ver mais um chefe português a ser recompensado por se ter arriscado a fazer a cozinha em que acredita, sem se intimidar pela conversa de que o Porto é “um meio difícil”, onde só vinga quem faz tripas ou francesinhas. Espero que, tal como os outros chefes portugueses distinguidos na noite de Marbella, que conheço melhor, não veja na estrela agora atribuída um ponto de chegada, mas sim um incentivo para prosseguir o seu caminho.

 

Por falar em “meios difíceis” e conservadores, uma nota final para o outro chefe que, tal como José Avillez, foi chamado ao palco da gala Michelin, o andaluz Ángel León, que tem um dos restaurantes mais radicalmente criativos que conheço, o Aponiente, nos arredores da Cadiz, onde tive um jantar inesquecível há cerca de dois anos, motivado pelas interessantíssimas apresentações que o tinha visto fazer no Madrid Fusión e no Peixe em Lisboa, em 2012.

 

Pois bem, Ángel León ganhou a segunda estrela, vai mudar para um restaurante maior e é reconhecido por todos como um dos chefes mais promissores da actualidade. Nos primeiros cinco anos, parece que o Aponiente estava quase sempre vazio, entre o desdém dos locais, e esteve quase para fechar até conseguir a primeiira estrela. Pelos vistos, as estrelas Michelin, a par de outros reconhecimentos importantes, sempre servem para alguma coisa…E, já agora, mesmo para terminar, espero que José Avillez venha a ser o primeiro chefe a conquistar três estrelas em Portugal.

Ángel León, emocionado, no momento do anúncio da sua segunda estrela. (Fotografia de divulgação)

 

 

Adenda: O insígne jornalista e crítico do Público, José Augusto Moreira, correspondeu ao apelo para um melhor conhecimento dos restaurantes portugueses que conquistaram estrelas Michelin nas últimas décadas e enviou-nos um histórico que ele recolheu junto aos próprios responsáveis pelo guia e que muito agradecemos. 

 

Assim, começando por Lisboa, realmente o Michel conquistou a sua estrela em 1974 que manteria até 1984, com uma interrupção em 1977; a Casa da Comida teve estrela entre 1983 e 1995; o Conventual entre 1987 e 1998 e a Tágide entre 1981 e 1992.

 

No Porto, o Portucale teve, de facto, estrela entre 1974 e 1980, assim como o Garrafão, um restaurante de que nunca tinha ouvido falar, de 1978 a 1980.

 

Em Cascais, O Pipas teve estrela entre 1974 e 1978 e, perto dali, o conhecido Porto de Santa Maria manteve a sua de 1984 a 2009. Nos anos 90, três restaurantes fora dos grandes centros mereceram a distinção: A Bolota, na Terrugem, de Júlia Vinagre, em 1992 e 1993, o que confirma que o L'And não foi o primeiro restaurante alentejano a ter estrela; a Tia Alice, em Fátima, de 1993 a 1996 e o Ramalhão, em Montemor-o-Velho, de 1991 a 2001.

 

Pelos dados obtidos até agora, o La Réserve terá sido o primeiro restaurante algarvio a conquistar uma estrela, em 1990, que manteria até 1995. O Vila Joya viria a seguir, conquistando a primeira estrela em 1994 e a segunda, que mantém até hoje, em 1999. O São Gabriel teve a sua primeira em 1995 e, apesar de mudar várias vezes de chefe, só em 2014 a perderia, para agora a reconquistar pela mão de Leonel Pereira. Por fim, o Ermitage teve estrela em 1996, perdendo-a em 2001, recuperando-a em 2004 para a perder de novo logo em 2005.

 

As estrelas mais recentes são bem conhecidas, por isso não vale a pena alongar mais esta adenda,  agradecendo de novo a José Augusto Moreira o envio destes dados tão úteis e interessantes.

 

 

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