O Pedro e o Lobo esteve no Arola, no hotel da Penha Longa e eu também estive lá. O Duarte Calvão já o desvendou e até me desafiou a comentar. Eu não resisto a desafios destes... sobretudo porque depois de ler o que o Duarte escreveu pensei que o que “ouvíamos do grasnar do pato", perdão... o que nos ficou da memória do jantar, era diferente. Apesar de termos tido a mesma experiência, sentados na mesma mesa, bem perto, mas suficientemente separados para não ter havido qualquer interacção entre nós. Interessante o modo como a interpretação de cada um é decisiva para a apreciação e interiorização da experiência.
Não sei porque é que o Pedro e o Lobo (o restaurante) se chama assim. Não sei de todo se o nome é inspirado na sinfonia de Prokofiev, mas não resisto a estabelecer um paralelo entre o jantar em que estivemos no Arola na Penha Longa e a música e texto de Prokofiev : Петя и волк (Pedro e o Lobo).
Na obra de Prokofiev cada uma das personagens: o pássaro, o pato, o gato, o avô, os caçadores, o Pedro e o lobo - era representada pelo som de um (ou mais) instrumentos. Na sinfonia, perdão… no jantar, em que participámos havia o mesmo número de componentes: a cozinha, o vinho, o chá, o serviço, o espaço, a organização (que nos definiu os lugares e com isso a componente seguinte) e a interacção entre os participantes. Cada uma destas componentes representavam um grupo grande de pessoas que os criaram e/ou os protagonizavam, todos com características e objectivos diferentes, contribuíndo para o resultado final.
A obra de Prokofiev passa-se numa casa inserida num jardim, murado, mas no meio de uma floresta escura . O espaço em que estávamos tinha características muito semelhantes.
Na história de Prokofiev havia na floresta lobos, lobos maus e perigosos para quem se aventurasse e saísse para fora dos muros protectores. No nosso caso estava um temporal terrível, chuva, granizo, trovoada e um vento que a certa altura, pelo menos para mim, se tornou assustador. Todos os vidros que nos rodeavam abanavam. Tão fortemente que receei que se partissem. Mas não. E como o Pedro e o pássaro dominaram o lobo e o neutralizaram, também o prazer da experiência que vivíamos neutralizou o que se passava fora dos vidros que nos cercavam e protegiam.
Na história o lobo engole o pato, mas não o mastiga, e enquanto o cortejo de participantes o transporta, quem escutar com atenção ouve o pato a grasnar. Também depois de uma experiência destas, nem tudo se dilui e perde na digestão, há sensações, impressões, memórias que ficam. Diferentes para todos nós. Quais são as minhas? Foi esse o desafio do Duarte… Mas antes só mais uma coisa.
Na obra de Prokofiev, o pássaro pergunta ao pato: “Mas que ave és tu que não sabes voar?”, o pato responde-lhe fazendo também uma pergunta: “Mas que ave és tu que não sabes nadar?”. Há tantas aves… todas diferentes. Há tantas cozinhas… todas diferentes. Tantas interpretações, tantas formas diferentes de expressar / provocar vivências, experiências, emoções. Para as desfrutar plenamente é essencial abertura para as receber e não nos prendermos a definições artificiais e ultrapassadas. Depois... os nossos gostos e experiências originam interpretações que as tornam diferentes para cada um.
Íamos ter oportunidade de desfrutar da cozinha do Diogo Noronha, agora numa nova fase da sua carreira – a solo.
Quando me serviram o prato seguinte, Bacalhau a 54º, Feijoca, Trompetas da Morte e Óleo de Cebola, confesso que fiquei apreensiva… diz-se que comemos com os olhos… e os meus não acharam o prato particularmente apetitoso. Será que aquilo batia certo? Mas as aparências iludem… Na obra de Prokofiev o pássaro frágil e o Pedro uma criança, dominam o terrível Lobo. Neste caso, quando este prato chegou à boca… foi um revelar de dotes que estavam escondidos. Eu gostei muito daquele prato, talvez um dos que gostei mais, com a elegância e subtileza, que se revelaram na boca.
O Duarte fala do conforto que lhe transmitiu a Meia Esfera de Perdiz e Foie, Mini Nabos, Emulsão de Pimenta Verde, Madeira e Alho Negro. Eu diria um conforto aparente. O vinho Madeira estava sob a forma de pequenas esferificações (inversas, e portanto o interior mantinha-se bem líquido), o sabor estava encapsulado e libertava-se apenas de vez em quando. Esferificações suficientemente pequenas para passarem despercebidas, mas suficientemente grandes para quando rebentavam na boca haver um explosão de sabor ao Madeira que nos despertava os sentidos. Gostei muito. Tenho comido boas aplicações destas técnicas, mas por cá são ainda muito pontuais e mesmo raras. Gostei muito desta. As esferas estavam escondidas no molho, quase passavam despercebida, foi um divertimento descobri-las. Procurá-las e antecipar o efeito. Transmitiam vida e irreverência ao dito conforto.
Gostei da sobremesa, sobretudo da riqueza de componentes e texturas. Forte, na linha do resto dos pratos… mas já me estava a apetecer descansar e alguma frescura, o que possivelmente não me deixou apreciá-la completamente.
Só tive pena que o Diogo não nos tivesse falado de cada prato, acho que tinha enriquecido muito a refeição. Para a próxima não esqueçam esta componente.
Gostei muito dos vinhos do Morgadio da Calçada. Agradaram-me especialmente os brancos (Morgadio da Calçada Primeiro Branco 2011 e Morgadio da Calçada Reserva Branco 2011). O Manuel Vilas-Boas falou-nos do projecto e a Gabriela Santos, da Niepoort, falou dos vinhos (pena que por vezes se ouvia mal, eu estava na outra ponta da mesa). Acho que saber mais permite sempre uma melhor apreciação, uma percepção diferente. Acho que associar caras a projectos e produtos cria novos laços, laços fortes. Gostei da combinação do Tawny com o Bombons de Chocolate e Foie Gras, Cassis e Toranja.
Mas houve outro aspecto que me agradou muito. No início da refeição serviram-nos um líquido meio turvo, esverdeado. O que seria? O nariz ajudou a resolver o enigma - chá verde. A Nina Gruntkowski, que com o Dirk Niepoort, são fanáticos por chá, tanto que têm já a sua própria plantação de chá, importam chás verdes do Japão.
Mais tarde bebemos um Sencha, quente, numa taça branca linda, com uma textura exterior que lhe conferia uma enorme beleza e elegância (está mais que provado que a textura da loiça influencia a percepção que temos do que comemos e bebemos).
Gostei muito desta componente menos habitual. Eu também adoro chá. Há bebidas tão nobres como o vinho e que merecem atenção,e que as conheçamos melhor. A sua introdução num menu só o pode tornar mais rico. Gostei da forma apaixonada como a Nina falava dos chás e da informação que nos deu.
Os lugares estavam marcados, eu não conhecia nenhum dos meus vizinhos de mesa, mas a conversa rapidamente ficou bem animada. Era fácil… o contexto ajudava. O Luís Baptista, sócio do Diogo Noronha no Pedro e o Lobo, falou das mudanças no projecto, da atitude mais informal, da nova carta, mais aberta, que incentiva a partilha. Fiquei curiosa!