O Mundo de Nuno Mendes em Londres
A zona leste de Londres, onde fica o Viajante, está para a capital inglesa um pouco como a área do Martim Moniz e da Almirante Reis estão para Lisboa. É uma zona multiétnica e com cultura urbana alternativa e emergente. O chef português, Nuno Mendes, vive e trabalha na zona desde que há 6 anos aterrou em Londres, sendo, por isso, um dos seus mais acérrimos defensores. Aqui, com a sua cozinha de vanguarda tornou famoso um pub da periferia, o Bacchus, o que lhe valeu o epíteto de ‘Heston (Blumenthal) de Hoxton’. Depois, fundou em sua casa o The Loft Project, o mais prestigiado restaurante underground entre todos os que abriram na febre dos supper clubs londrinos. O projecto continua e recebe actualmente chefs de todo o mundo (que vêm mostrar a sua cozinha por curtos períodos), porém, desde há 2 anos, Mendes dedica-se, sobretudo, ao Viajante, o seu projecto mais ambicioso de sempre.
Sigo de autocarro vindo de um hotel próximo da Tower Hill, zona turística e empresarial onde a partir das 19h não se vê vivalma. É muito diferente de Bethnal Green, onde se situa o Viajante, ainda que distem pouco mais de 20 minutos. O motorista não sabe dizer qual a paragem em que devo sair mas com alguma fé e ajuda de um ‘brother’ jamaicano, impecável no seu fato vintage de três peças, arrisco e desço junto a uma mercearia indiana. Entro e pergunto pelo restaurante. “Via-o-quê?”, balbucia o empregado. “Vi-a-jan-te”, soletro. “Hotel restaurant? Ali!”, aponta para o outro lado da estrada em direcção a um edifício vitoriano que se destaca entre o edificado modesto da rua. À porta está Leandro Carreira, o português que foi chef de partida no Mugaritz e que é agora o braço direito de Nuno Mendes. Ri-se com o meu ar esbaforido e convida-me entrar. São 19.45h. Janta-se cedo por terras de Sua Majestade.
pormenor da sala - foto: Viajante
O Viajante ocupa uma parte do piso térreo do Hotel Town Hall, num antigo edifício municipal onde funcionou uma espécie de Junta de Freguesia local. São duas salas divididas ao meio por duas arcadas e uma lareira antiga herdada da configuração original. O chão antigo em madeira, com tacos em ziguezague, e o mobiliário de estilo nórdico com cadeiras forradas a tecido azul claro marcam o ambiente. Destinam-me uma das mesas da frente – no total as duas salas não terão mais de 10, para uma lotação de pouco mais de 30 pessoas por noite - como numa plateia voltada para o palco, no caso, uma cozinha totalmente aberta para a sala. A sensação estar prestes a assistir a uma representação é tanto maior quando reparo que as duas pessoas da mesa mais próxima estão lado a lado viradas para a cozinha e não frente a frente como é mais comum. Contudo o espectáculo não começa ao mesmo tempo, mas sim em sessões contínuas dado que apesar de não haver rotação, as marcações são efectuadas para horas desencontradas (entre as 18.30h e as 20.30) de modo a que a curta equipa do palco de 8 pessoas não entre no ‘lodo’.
Nuno Mendes fez questão de dar um nome português ao restaurante (apesar dos ingleses terem alguma dificuldade em pronunciá-lo), de ter um sub-chef luso a seu lado e de afirmar a sua nacionalidade. Contudo, o Viajante não é um restaurante de cozinha portuguesa pois o seu mentor é um cidadão do mundo, a equipa é multinacional e as suas influências espelham os lugares por onde passou: Portugal (onde nasceu e cresceu), EUA (onde se formou e se iniciou na profissão), Ásia, América Latina (por onde viajou) e Inglaterra (onde reside). Em termos de estilo aproxima-se da cozinha naturalista dos novos nórdicos e dos vanguardistas espanhóis, mas a sua personalidade e o seu espectro geográfico é mais vasto.
Da sua mente inquieta nascem criações complexas, com o recurso a produtos e técnicas (novas e clássicas) menos comuns, originando composições surpreendentes, nem sempre fáceis, mas com um apurado sentido de equilíbrio. Nuno Mendes diz que para compreender melhor o conceito é necessário, no mínimo, escolher o menu de 6 pratos, sendo o de 9 o mais aconselhado e o de 12 para quem quiser fazer o pleno. Não há, por isso, hipóteses de escolha à carta, embora ao almoço de sexta-feira a domingo haja um menu reduzido de 3 pratos.
pipoca de amaranto com puré de trevo azedo
filete de sardinha ligeiramente curada, com avelãs frescas e abóbora esparguete
batata com pancetta de porco ibérico e fermento de pão
Seria fastidioso para não dizer masoquista falar de tudo o que degustei, dado que fiquei nas mãos dos chefes. Apenas no final, com o menu impresso, dei conta que, além de terem decorrido 4 horas (sem que tenha dado pelo tempo passar), foram-me servidos 23 pratos - 6 snacks, 12 principais e 5 sobremesas. Obviamente que em mini porções. No caso dos snacks, para degustar em uma ou duas vezes e, nos principais, em cinco ou seis garfadas. Nos primeiros, não irei esquecer tão depressa a batata com pancetta de porco ibérico com um apontamento ácido de fermento de pão, que resultou num contraste de sabores único; da subtileza de um filete de sardinha ligeiramente curada, com avelãs frescas e abóbora esparguete; ou da desconcertante pipoca de amaranto (cereal da América Latina) com puré de trevo azedo.
Nos principais, retive, de memorável, a incrível vieira da Escócia de textura sedosa e do seu sabor intenso, reforçado por um fresco e crocante conjunto de 'ervas maritimas' (salicornia, salty fingers...) congeladas no momento em azoto liquido; uma lula num assertivo 'demi-glace' com pinhões; o aipo bola assado no forno servido com burrata - a provar que o sabor dos lácteos combinam muito bem com o desta raiz; e uma gulodice cuja textura sedosa se esmaga entre a língua e o céu da boca, deixando um sabor animal distinto e prolongado, sensação comparável à de um bom foie gras fresco, bem cozinhado. Refiro-me ao tutano de vaca que é retirado do osso do joelho do animal. No Viajante esta iguaria é ligeiramente fumada sendo as notas de fumo um valor acrescentado. Embora o Viajante não seja um restaurante de cozinha portuguesa existem pequenos apontamentos onde a origem se faz sentir. De forma mais óbvia, nos tendões de porco com grelos e grão (a lembrar um cozido de grão)e, de uma forma mais sugerida, no 'bacalhau dos mundos', um prato servido em dois serviços: primeiro o colarinho/cachaço (parte junto ao pescoço a que chamam ‘collar’) cozinhado no forno envolvido em folhas de algas e servido com um original caldo de dashi do próprio bacalhau - que Nuno Mendes diz ter-se inspirado um prato filipino. Depois, as tripas com cebola, salsa e batatas e azeite, uma combinação bem lusa.
vieira da Escócia com 'ervas maritimas' crocantes

Após mil e uma voltas com diversos ingredientes menos comuns poderia não acrescentar valor servirem uma presa de porco alentejano. Acontece que a qualidade da peça, a forma como foi bem confeccionada e o acompanhamento com uma espécie de tempura de tomate, transformou-a num dos pratos inesquecíveis de um menu que prosseguiu em grande - e de forma não menos original - com as sobremesas, todas incluindo gelado e quase todas confeccionadas com legumes. Este segundo aspecto pode soar estranho mas a estranheza logo desvanece quando colocamos na boca a primeira colherada de... pepino! Sim, em pickle adocicado, em granizado e em sorvete. Apesar de ter amado as restantes, com destaque para a batata doce (em gelado e em polpa e casca desidratadas), foi esta que me apetecia ter repetido no fim. Absolutamente genial.
presa de porco alentejano
O capítulo dos vinhos enquadram-se no espírito alternativo e 'globetrotter' do restaurante. A carta é curta e a informação básica, não incluindo mais do que 150 referências, vindas um pouco de todo o mundo, em geral, de produtores com personalidade. Gostaria de ter visto mais rótulos portugueses na carta (apenas dezena e meia) e nos quinze vinhos que acompanharam o menu (somente dois brancos, o Filipa Pato Nossa Calcário 2011 e o Niepoort Testalonga 'El Bandito' 2008). No entanto, se há algo de fascinante em Londres é a possibilidade de provarmos vinhos interessantes vindos de todo o mundo e nesse campo as escolhas do sommelier foram quase sempre acertadas.
Em relação ao serviço o atendimento foi cortês, descontraído e profissional, revelando, de um modo geral, conhecimento de causa na apresentação dos pratos, o que dada a complexidade das propostas, não deixa de ser assinalável.
O Viajante confirma-se como um dos restaurantes mais estimulantes de Londres e é sem dúvidas merecedor de constar na lista dos ’50 Melhores Restaurantes do Mundo’ (actualmente na posição 80, com prognósticos para subir) e da estrela Michelin que detém desde há 2 anos.
Cozinha: 19 ; Sala: 18; vinhos: 18
Preço médio - Almoço: 3 pratos (35£; 53£*) 6 pratos (65£; 115£*), 9 pratos (80£; 145£*) // Jantar: 6 pratos (70£; 120£*), 9 pratos (85£; 150£*), 12 pratos (95£; 175£*). A este valor acresce 12% de serviço. *com acompanhamento de vinhos
Contactos:
Town Hall Hotel, Patriot Square – Bethnal Green, Londres; viajante.co.uk; Reservas: info@viajante.co.uk ; Telef: (+44) 020 7871 0461; Horário: 6ªF a Domingo, 12.00h – 14.00h ; 2ªF a Domingo, 18.00h-21.30h
Texto publicado originalmente na revista Wine 75 de Novembro 2012. As fotos são da minha autoria, com excepção para as assinaladas.