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Os cozinheiros que vão salvar o Planeta

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Imaginemos que vamos a um restaurante e que gostamos imenso da refeição. No final, como é habitual, o chefe vem às mesas falar com os clientes. Quando chega a nossa vez, curiosos que somos, fazemos algumas perguntas sobre o que comemos e que tanto nos agradou. Continuem a imaginar o seguinte diálogo:

 

Nós– Gostei especialmente dos legumes, que muitas vezes são negligenciados. São biológicos?

Chefe– Por acaso, não sei. São de um fornecedor que os compra a certos produtores. Ele é quem os conhece. Eu nem sei bem de onde vêm.

Nós– Ah, tá bem. Mas que eram bons, eram. E os peixes? Estavam fresquíssimos, realmente não há como os peixes portugueses...

Chefe – Pois, alguns não eram portugueses. Nesta altura, por exemplo, consigo melhor pescada em Espanha, mas às vezes vem até da África do Sul, trazida por um outro fornecedor com quem trabalho há muitos anos. O pregado, sim, sei que é de uma aquacultura portuguesa que está a trabalhar muito bem. Mariscos é que é mais difícil, os camarões são escoceses, o ouriço-do-mar é galego, as vieiras são francesas...

Nós, já algo descoroçoados – E as carnes?

Chefe– As de vaca em Portugal são difíceis, não consigo encontrar com a qualidade e a regularidade que preciso. Mando vir tudo de fora. Às vezes, vêm da Austrália ou da Argentina.

A conversa não está a correr como prevíamos e decidimos mudar de tema.

Nós– Como é que vê este movimento contra o desperdício alimentar nos restaurantes? Está a colaborar com alguma instituição?

Chefe– Não temos tempo para isso. Quando acabamos o serviço, estamos tão estafados que só queremos ir embora. Às vezes, alguns dos nossos cozinheiros levam os restos para casa, mas a maior parte vai mesmo para o lixo.

Nós– Mas não aproveitam nada?

Chefe– É que procuramos só trabalhar com produtos frescos e é raro aproveitar alguma coisa para o dia seguinte.

É nessa altura que nos damos conta que já é tarde e que temos que ir embora. Despedimo-nos com a sensação de que afinal a refeição não tinha sido tão boa quanto isso...

 

A verdade é que estes aspectos extra-culinários - a preferência pelos produtos biológicos, pelos produtos de proximidade, da pegada ecológica, a sustentabilidade, o combate ao desperdício etc,-  assumiram tal importância entre chefes e responsáveis por restaurantes (e também sobre muitos que sobre eles escrevem, seja profissionalmente seja em redes sociais) que hoje são elementos essenciais na percepção da experiência gastronómica.

 

Ora não há nada de mal, pelo contrário, num chefe que tenha preocupações ambientais e que queira ser uma espécie de “embaixador” dos produtos provenientes do seu país ou região. Mas isso não o torna num cozinheiro melhor. São aspectos separados. No entanto, sabendo da boa receptividade que essas “preocupações” obtêm entre clientes em geral e os “media” em particular, há cada vez mais chefes, muitas vezes aconselhados por agências de comunicação e especialistas em marketing, que gostam de se “vestir” dessa maneira.

 

E lá vêm as visitas, de braço-dado com jornalistas e fotógrafos, aos pequenos produtores, as idas ao campo, ao bosque, ao mar, ao rio, aos mercados locais. Lá vêm os pratos em que se aproveita a aleta do peixe, as entranhas do porco, a rama verde do alho-francês. Mais uma vez nada a objectar. Mas também mais uma vez não se tornam melhores cozinheiros por o fazerem.

 

Com o advento dos “chefes-celebridade”, muito mais do que desenvolver técnicas culinárias, criar consistentemente novos pratos, assegurar grandes restaurantes, passou a ser muito mais fácil aparecer nos “media” como campeão da sustentabilidade e/ou das causas sociais. Muitos chefes sabem disso e vão na onda. É pena que muitos jornalistas, críticos, bloggers, instagramers e gastrónomos em geral se deixem ir também, argumentando geralmente que eles são “exemplos” para a sociedade e como tal as suas boas acções devem ser enaltecidas e divulgadas. Seria bom que se separassem as coisas.

 

É certo que o mundo da cozinha não é impermeável às sociedades em que se desenvolve. Basta pensar que os restaurantes como hoje os conhecemos surgiram no pós-Revolução Francesa, quando os cozinheiros que trabalhavam para a corte e nos palácios dos nobres se viram na necessidade de abrir os seus próprios estabelecimentos. Ou, num exemplo bem mais recente, dificilmente imaginaríamos o triunfo da cozinha de vanguarda espanhola se ela não tivesse coincidido com um período de mudança cultural, crescimento económico e de afirmação do país no mundo como Espanha viveu nos anos 90 e primeira metade de 2000.

 

Mas também é certo que a cozinha sempre teve como objectivo primordial o seu próprio desenvolvimento. De alguma maneira, sempre se bastou a si própria. Que agora os seus principais intérpretes tenham como preocupações principais temas que que fogem à sua especialidade – seja salvar o Planeta seja alimentar os pobres do mundo – e nos quais outras profissões podem dar contributos bem mais relevantes, só mostra a falta de rumo que hoje existe na cozinha a nível global.

 

Todos gostamos de saber que os restaurantes onde vamos respeitam boas práticas ambientais. Tanto melhor se promovem o trabalho de pequenos produtores locais. Melhor ainda se contribuem para o bem-estar social. Mas, acima de tudo, nunca deveríamos secundarizar a arte de um cozinheiro, sem a qual tudo o resto perde o sentido.

 

Nota 1:  Artigo publicado originalmente na edição de Agosto de 2019 da Revista de Vinhos, dedicada a temas "Bio"

Nota 2: Fotografia da Chef's Table: Pastry, publicada apenas neste post e não no artigo original

 

 


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