Quando ligámos a Ljubomir Stanisic para o convidar a responder a este questionário, estava a caminho da Serra da Estrela onde ia recolher ingredientes aromáticos para um novo destilado que está a desenvolver. Porém, podíamos tê-lo apanhado numa adega, com um pescador na ilha da Armona, numa cozinha improvisada no meio do mato ou mesmo ali ao lado a esfolar um coelho.
Na verdade, há quem gostasse de o ver mais na cozinha e ele refere que esse “é o lugar onde mais gosta de estar”. Todavia, revela que considera “uma parvoíce” que certos clientes só queiram ir aos seus restaurantes quando lá está, porque diz ter “uma equipa do caraças” e que além disso não poderia estar em todos eles ao mesmo tempo.
Sim, nos últimos tempos tem-se lido mais tiradas bombásticas sobre a sua vida pessoal do que sobre a profissão que o tornou conhecido e percebe-se que a sua relação com a fama lhe traz sentimentos contraditórios: “a caixinha é mesmo mágica - mas tem dias...”.
Mencionámos que íamos lançar-lhe questões relacionadas com ele, com os seus projectos, com certos aspectos da restauração e da gastronomia e que não nos interessava saber se já “pinou” com meia Lisboa ou quantas vezes já puxou da faca para tatuar alguém. O resultado? Há que dizê-lo: esteve muito bem. Praticamente um gentleman. Bom... ainda lhe saiu um “estou-me a cagar” para as estrelas (Michelin) e que ainda avia uns sopapos dentro e fora da cozinha se for preciso. Afinal, trata-se de Ljubomir Stanisic, ou o “Ivan” o temperamental, que antes de ser vedeta televisiva já era um cozinheiro e chefe de provas dadas, num percurso que começou (em Portugal) com Vítor Sobral e que desembocou, depois de uma passagem pelo Fortaleza do Guincho, nos restaurantes 100 Maneiras – primeiro em Cascais (2004) e posteriormente em Lisboa (2009) - e Bistro 100 Maneiras (2010). Ah! e preparem-se, vem aí o novo 100 Maneiras "3.0".
Como já deu para perceber o Menu de Interrogação está de volta para uma nova série de 12 entrevistas, a terceira, e de novo com o apoio da Estrella Damm no âmbito do apoio da marca à gastronomia.
No meio de todo um circo mediático, com títulos e frases bombásticas puxados para as capas das revistas, não teme que certos pormenores secundários à sua actividade, se sobreponham em demasia ao que o tornou conhecido, a cozinha? Ou acaba por estar tudo ligado?
Acho que este mediatismo todo tanto me aproximou como me afastou da cozinha. Nos chamados meios cor-de-rosa só tem aparecido merda, as revistas alimentam-se do que encontram no caixote do lixo. Mas teve também um lado bom porque muitas pessoas, nomeadamente telespectadores, se aproximaram de mim com uma atitude que só me lisonjeou. Cheguei a pessoas e a histórias que, de outra forma, nunca chegaria. A caixinha é mesmo mágica - mas tem dias...
Sendo uma figura pública, acha que há clientes que se forem a um restaurante seu e não o encontrarem por lá vão ficar decepcionados?
Duvido que fiquem decepcionados, porque tenho mais que um restaurante e seria impossível estar em todos ao mesmo tempo. Agora, que há clientes que me mandam mensagens a dizer que só querem ir aos restaurantes quando eu estiver lá, sim, acontece-me muitas vezes. Só que eu acho que é uma parvoíce porque um cozinheiro só é bom se tiver uma boa equipa, não precisa estar lá todos os dias.
Nestes anos todos de cozinha, o desafio mais difícil foi construir equipas. Neste momento, posso dizer que todo o esforço - e revezes - destes anos, foi compensado. Tenho uma equipa do caraças e, se num dia não estou dentro da cozinha, que é onde mais gosto de estar, sei que corre tão bem como quando estou. Além disso, um restaurante não é o resumo de um chefe, apenas. É a soma de todas as partes mesmo. Os 100 Maneiras não são só eu. Não se construíram só com estas duas mãos. São um conjunto de pessoas que, juntas, fazem aquilo acontecer todos os dias. E gosto que a equipa sinta - e tenha - a sua importância, o seu papel.
Gosto de formar pessoas e de as ver crescer comigo. É uma das coisas que me dá mais prazer actualmente. Por isso, promovo muito a descentralização, organizo muitos team buildings, formações, trago os meus cozinheiros e empregados de sala e bar para quase todos os projectos que tenho dentro e fora do 100 Maneiras.
Dá para perceber que gosta de desafios. Está sempre em busca de novos desafios ou são eles que se atravessam à frente? A propósito, qual é o próximo?
Sim, estou sempre em busca de novos desafios. Alimento-me deles. Crio a partir deles. Sou irrequieto e curioso de nascença, excita-me tudo o que é novo. Adoro andar à procura dos novos produtos, novos produtores... Sobre o próximo desafio, estou neste preciso momento a conduzir para a ilha do Farol, onde quero pescar um robalo acima de 4 kg (risos). Mas há outros… E que estão a ser pensados por várias cabeças há vários anos.
Já teve projectos que falharam, mas consegue sempre levantar-se, o que é raro em Portugal. Considera que os portugueses têm mais dificuldades do que outros povos em reagir aos fracassos?
Tenho dúvidas que isso tenha alguma coisa a ver com os portugueses. Conheço muitos na cozinha que conseguiram renascer e outros que não o conseguiram. Temos o exemplo do Vítor Sobral, que já foi ao charco e ao chão e se levantou em grande. Acho que, mais do que estar relacionado com a cultura ou nacionalidade, esse poder da fénix tem a ver com o indivíduo e a sua força de vontade. Só posso falar por mim e, nesse caso, se for novamente ao chão, garanto que me vou levantar. A minha força natural, da minha educação e das minhas circunstâncias de vida, como a guerra, fizeram de mim um homem mais forte, sem medos nem medidas. De cada vez que tropeço e caio ao chão, continuo a caminhar. Se me corto, continuo a cozinhar. Não páro. Esse é o meu modo de vida.
O que é que se pode esperar do novo 100 Maneiras, um aglutinador de todas as ideias e projectos que se tem vindo a envolver ao longo de todos estes anos? (cozinha contemporânea, tradicional; Comfort food, fine dining, vegetariana, cocktails, vinhos, destilados, livros, vídeos...).
Isso tudo e muito mais. O novo 100 Maneiras é a versão 3.0 do actual. Já não é sequer a 2.0. Já passou tanto tempo desde que o começámos a planear, que o futuro já se tornou passado entretanto :). Este 100 Maneiras é a súmula de todos estes anos a trabalhar em cozinha e fora dela. É um Ljubo mais maduro mas igualmente temperamental. Talvez também por causa dos atrasos e complicações da obra, tivemos tempo de apurar a fórmula, afiná-la ao detalhe. E não falo só de comida, mas também de vinhos, de coquetelaria, de música, de arte e de histórias. Vamos ter todo o espírito 100 Maneiras num só lugar e um Ljubo completo, o Ljubo enquanto pessoa e cozinheiro, enquanto Bósnio e Português, enquanto técnico exigente e bon-vivant inveterado. Vai ser mesmo o espelho da minha alma, da minha história, dos meus gostos e vivências. Não vai ser nunca igual. Não podem esperar de mim rotina e consistência, mas surpresa constante.
Diz-se que há cada vez menos lugar nas cozinhas à violência verbal. Julga que esse processo é positivo ou fará sempre falta alguma “veemência” quando alguém ou alguma coisa falha?
Acho que cada vez menos violência na cozinha é uma coisa saudável e boa. Eu próprio mudei o meu método de trabalho. Mas continuo a não deixar, não só na cozinha mas também fora dela, de aviar um sopapo a alguém que falhe. Não temos margem para falhanços.
Ljubomir na cozinha do Six Senses Douro Valley, onde é chefe consultor gastronómico
Tornou-se cozinheiro por uma questão de vocação ou se, ao chegar a Portugal, tivesse encontrado emprego noutra área, jamais pensaria em seguir a profissão?
Eu não nasci para ser cozinheiro nem merda nenhuma, até porque não tive oportunidade de estudar para profissão nenhuma. Simplesmente, aos 14 anos tive de me tornar padeiro para sustentar a família, na altura da guerra da Jugoslávia. Quando saí, o meu primeiro emprego foi a lavar loiça. Acho que o destino é que escolheu o meu futuro. Mas se tivesse tido outra profissão qualquer garanto que seria bom, porque tenho força de vontade e quero vencer.
Depois da minha infância não me permitiria viver aquele tipo de vida, desistir e fechar-me num buraco. Só agora, há poucos anos, quando escrevi o primeiro Papa Quilómetros, ao rever a minha história é que me apercebi que estava destinado a dedicar-me à cozinha, não podia ser outra coisa qualquer. A minha família, a minha cultura, com a sua devoção à cozinha e ao produto, sem querer, criou um “monstro” :)
Acompanha o trabalho dos outros chefes portugueses e estrangeiros? Com quais mais se identifica?
Acompanho o trabalho de muitos chefes. Aqueles com quem mais me identifico são os que me dão a comer (risos). E são muitos. O Ricardo Costa, Vítor Sobral, João Rodrigues, Hans Neuner, Alexandre Silva, Henrique Sá Pessoa, José Avillez, mas também o Bjorn Frantzen, o Rasmus Kofoed, o Victor Arguinzoniz, o Josean Alija, o Didier Edon, o Alain Passard, o Grant Achatz, o Alex Atala... são tantos! Acompanho o trabalho de todos eles e respeito o trabalho de todos eles. Acredito no poder da “concorrência”. Nada como um bom “combate" para nos querer fazer ser melhor e mais forte.
Ganhar uma estrela Michelin é algo que não lhe interessa mesmo nada?
Estou-me a cagar para as estrelas!
E pergunta da praxe: qual seria a sua ultima refeição se soubesse que o mundo acabaria amanhã?
Provavelmente seria sentado na mesa com os meus filhos e a minha mulher, a minha família, com a receita de cabeça de vaca do “tata” Mihailo (o meu pai).
Patrocínio:
Fotos: retiradas do site e Instagram do 100 Maneiras
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