O novo guia Michelin para Portugal, lançado na quarta-feira em Santiago de Compostela, causou-me uma surpresa, a estrela do Bon Bon, restaurante de que nunca tinha ouvido falar, uma estranheza, ainda que agradável, a manutenção da estrela da Fortaleza do Guincho, que mudou de chefe quando, geralmente, as visitas dos inspectores já teriam terminado e uma decepção, a retirada da estrela ao L’And, não dando nenhuma oportunidade ao chefe Miguel Laffan para retornar ao bom caminho.
Começando pelo Bon Bon, devo dizer que só comecei a ouvir falar nele e da possibilidade de ganhar a estrela há poucos dias. Falei com algumas pessoas e o desconhecimento era generalizado. Achei estranho, ainda para mais porque tem um nome que parece de snack-bar, o que não ajuda, e fui pesquisar na Internet. No site, aparece em grande destaque o casal de proprietários, ficamos a saber que mudou de gerência em 2013 e nada sobre quem é o chefe, apenas a fotografia de um grupo de cozinheiros. Como já ando nestas coisas há alguns anos, preferi nem pôr o nome do restaurante no post prévio ao anúncio do Guia. Não me arrependo nada desta prudência, apesar da polémica que causou (incluindo comentários anónimos...), de me resguardar da possibilidade de promover restaurantes que nem sequer conheço. Não tenho nada contra agências de comunicação (eu próprio, nos anos 90, trabalhei nelas, embora não na área da gastronomia), pelo contrário, elas podem ser boas fontes de informação e de apoio a quem escreve sobre restaurantes. Mas eu não sou pago para ser Relações Públicas de restaurantes e espero que a vida nunca me obrigue a tal. Por isso, digo o que me apetece e da forma que me apetece.
Também desconfiei da notícia de que o chefe ou o proprietário (não se sabia bem) teria sido convidado para a apresentação do guia em Santiago de Compostela. Acompanho estas apresentações públicas desde que começaram, em 2009 (relativa ao guia de 2010, o do centenário da edição Espanha & Portugal), e sempre me pareceu que só convidavam chefes que tinham, pelo menos, uma estrela.
Os chefes dos restaurantes que conquistaram a primeira estrela no Guia Michelin Espanha & Portugal 2016 no palco da Gala, em Santiago de Compostela. Rui Silvestre, do Bon Bon, é o segundo a contar da direita entre os que estão na primeira fila. Foto de divulgação
Foi só quando vi Rui Silvestre (o chefe do Bon Bon) e os chefes espanhóis que ganharam este ano uma estrela subirem ao palco para serem profusamente filmados e fotografados que percebi. Neste ano (como, aliás, no ano passado, tendo os distinguidos com duas estrelas sido então só dois, José Avillez e Ángel Léon), os inspectores foram especialmente forretas e, além destas primeiras estrelas, só havia mais duas atribuições de segunda estrela. Não havia novos três estrelas, novas celebridades a apresentar. Ou seja, era preciso criar mais momentos mediáticos, daqueles que saem em todos os jornais, revistas, televisões e blogs, e os novos chefes com uma estrela serviram para o efeito.
A Michelin é uma empresa privada, faz o que bem entender, mas não me parece boa política convidar chefes que ainda não têm estrelas para estas galas. A partir de agora, quem não tiver e for convidado, fica a saber, semanas antes, que ganhou a primeira estrela. E, como é óbvio, será impossível manter a boa notícia em segredo, como o caso do Bon Bon veio demonstrar. Creio que eles disseram aos chefes que o convite não significava automaticamente que tinham ganho uma estrela, que poderia ser para Bib Gourmand (categoria que distingue as boas relações qualidade/preço), mas, como percebeu logo Rui Silvestre, certos restaurantes sabem perfeitamente que não se enquadram no género. Perde-se assim uma das características lendárias do Guia Michelin, que era de manter em segredo quais eram os restaurantes estrelados até à sua divulgação pública e generalizada. Perde-se o mistério.
Quanto ao Bon Bon em si, conversei com Rui Silvestre logo a seguir à “subida ao palco” e fiquei com muito boa impressão dele e do projecto em que está envolvido. Disse-me que de facto o site não esclarece bem e que está prestes a ser reformulado. Como digo sempre, para mim, quantas mais estrelas vierem para Portugal, melhor. E fico ainda mais satisfeito quando elas distinguem e incentivam o trabalho de jovens chefes portugueses, como é o caso de Rui Silvestre.
Miguel Rocha Vieira recebeu um "voto de confiança" da Michelin para o seu trabalho na Fortaleza do Guincho
Quem também deve estar a sentir-se incentivado pela Michelin é Miguel Rocha Vieira e ainda bem. Espero que seja, como ele diz, um primeiro passo de um caminho que o leve cada vez mais longe. Fiquei naturalmente satisfeito, mas confesso que, nestes anos todos em que acompanho o guia, foi das estrelas que mais estranheza me causou. Os inspectores terão ido à Fortaleza do Guincho em Agosto ou Setembro? Porque se foram nessa altura, julgo que, para os clientes em geral (e os inspectores garantem que se põe sempre na “pele” de um cliente normal) ainda estava a vigorar a cozinha de Vincent Farges, que saiu em Agosto, e o guia é relativo a 2016, não a 2015. Será que já havia alguns pratos novos, de Miguel Rocha Vieira? Foram esses que eles escolheram, em vez de outros? Eles foram lá a pedido do hotel, já fora do período habitual de visitas aos restaurantes portugueses? Se foram, desde que tenham permanecido incógnitos (e parece que sim), não há mal nenhum, mas fica a dúvida se fariam a mesma coisa se o pedido viesse de outros.
Julgo que a Fortaleza do Guincho e Miguel Rocha Vieira (que já conquistara uma estrela no Costes, em Budapeste, a primeira da história da Hungria) fizeram uso da sua boa reputação ao longo dos anos para conseguir uma espécie de “voto de confiança” da Michelin. Por mim, ainda bem que o fizeram e que deu resultado. Mas creio que só no próximo ano, com a cozinha do novo chefe já em pleno (ele acaba de apresentar a nova carta à Comunicação Social), se poderá esclarecer cabalmente como a Michelin avalia esta mudança na Fortaleza do Guincho. Adivinho que voltará a ser de forma positiva e, mais uma vez digo, ainda bem.
Miguel Laffan promete que vai já começar a trabalhar para recuperar a estrela perdida este ano. Foto: Notícias de Montemor
Quem não teve direito a “voto de confiança” foi Miguel Laffan. Ainda tive esperança que, dois anos depois de ter atribuído a estrela ao L’And, a Michelin fechasse os olhos a um ano que o próprio chefe reconheceu ter corrido mal e que, após a devida advertência, lhe dessem oportunidade de corrigir a situação. Sei que fazem isso com muitos chefes em diversos países, mas aqui foram implacáveis. Fica também a dúvida de que se o hotel L’And and Vineyard, em vez da Small Luxury Hotels, pertencesse à Relais & Châteaux, como a Fortaleza do Guincho e a Casa da Calçada (que também mudou de chefe neste ano, mantendo a estrela, embora tenha sido uma solução de continuidade com o antigo subchefe, André Silva, a substituir o chefe Vítor Matos), a atitude da Michelin seria a mesma. Não é essa a minha opinião, mas a verdade é que este comportamente do guia vem reforçar os argumentos daqueles que garantem que a Michelin favorece os restaurantes dos hotéis que integram a prestigiada cadeia francesa.
Há, no entanto, uma lição a tirar da perda da estrela do L’And, embora seja pena que à custa do competente e promissor Miguel Laffan. Vem mostrar que não basta conseguir conquistar uma estrela (ou duas ou três) é preciso saber mantê-la. Julgo que o erro do simpático chefe foi participar noutros projectos (Porto de Santa Maria, Barbatana, Chicken all Around) sem ter uma equipa que lhe garantisse a retaguarda no L’And. É cada vez mais comum, aqui e em muitos países, que os chefes ganhem “músculo financeiro” em projectos mais rentáveis do que os restaurantes estrelados, mas não podem matar a galinha dos ovos de ouro, não podem descurar o restaurante que está na base da sua reputação, que, por sua vez, é o que lhes possibilita serem convidados para os tais projectos rentáveis.
Miguel Laffan, que louvo pela honestidade consigo próprio, pela capacidade de assumir o erro (algo raro entre nós, não só na cozinha, mas em muitas outras áreas), é o primeiro a perceber isso. Aliás, penso que esta atitude inteligente será o início do caminho para a recuperação da estrela, que espero que seja rápida. É bom que quem se queira meter neste “campeonato” das estrelas vá bem preparado e consciente do que ele implica. Há, felizmente, muita e boa cozinha fora dos restaurantes estrelados, e ninguém é obrigado a jogar neste campeonato. Mas, se for para entrar nele, as regras são essas, ninguém tenha ilusões para depois não ter desilusões.