Cerca de 400 convidados compareceram nesta segunda-feira ao primeiro Congresso de Gastronomia Estrella Damm, que decorreu na Lx Factory, em Lisboa. Sendo o tema “As Chaves da Cozinha de Vanguarda”, a verdade é que, além de muitas pistas para o explorar, houve também ocasião para os seis chefes portugueses e espanhóis que se apresentaram mostrarem o trabalho que estão a realizar actualmente, assim como as reflexões que o justificam, o que certamente agradou à plateia - constituída essencialmente por profissionais de cozinha, de sala, jornalistas e bloggers especializados e outras pessoas ligadas ao sector da restauração - que não arredou pé até ao final do evento.
Kiko Martins deu início à sessão da manhã numa apresentação que começou por mostrar o seu pensamento sobre o que é necessário para uma cozinha de vanguarda. “Conhecimento” sobre a história do mundo e da cozinha, domínios das bases da cozinha e dos produtos, bem como uma dimensão cultural. Depois, “Pessoas”, ou seja saber quem são, o que comem, como vivem, o que procuram e o que as faz felizes. Surge então a busca da “Experiência”, com o chefe português a indicar aspectos bem concretos a ter em conta por quem cozinha a esse nível, como a frescura dos ingredientes, as preocupações com a saúde, as restrições alimentares, a diminuição dos hidratos e o carácter de partilha dos pratos.
Kiko Martins explicou o seu modo de ver as "chaves da vanguarda" e mostrou como faz os ceviches que lhe deram fama
Outras reflexões se seguiram nesta bem organizada intervenção inicial, com Kiko Martins a considerar que, por muita evolução técnica que haja, nunca se deve esquecer que o mais importante continua a ser o sabor, que não se deve ter medo de falhar nem de se ser, na cozinha, “não democrático”, no sentido em que não se deve deixar de arriscar por receio de não agradar ao cliente. Para terminar esta primeira parte teórica, haveria ainda a chamada de atenção para três outras “chaves”: o “Planeta Terra”, com a escassez crescente de recursos, com o desperdício (“40% dos alimentos que produzimos acaba no lixo”, afirmou o chefe), com a alteração da forma como comemos; a “Insatisfação” que deve nortear o trabalho na cozinha, ambicionando mais, inovando, procurando melhorar e, por fim, o “Mundo”, com as vantagens de conhecer outros países e hábitos. “Viajar é tudo”, foi a frase com que concluiu esta primeira parte.
Seria precisamente esta última “chave” que daria o mote à segunda parte da apresentação, que começou com a exibição de um filme sobre a viagem ao Peru que Kiko Martins fez e que seria determinante para abrir A Cevicheria, um dos projectos mais bem sucedidos que Lisboa conheceu nos últimos anos. Passou-se então para a parte prática, com o chefe a mostrar como se faz um “leche de tigre” e a sua importância no ceviche, demonstrada num ceviche tradicional, com peixe branco, e noutros dois à base de atum, da autoria do chefe português.
Nandu Jubany fez uma apresentação de vários pratos da sua cozinha de "Neotradição" catalã
A apresentação do chefe que se seguiu contrastou bastante com a de Kiko Martins, já que o catalão Nandu Jubany, que intitulou “Neotradição” a sua intervenção, não abordou muito a parte teórica, partindo de imediato para a cozinha, que incluía um forno Josper mesmo ao lado do palco. Ficou, no entanto, bem claro, que Jubany, que tem o seu restaurante-bandeira Can Jubany (uma estrela Michelin), em Vic, a uma hora de Barcelona, aposta na proximidade e rastreabilidade dos produtos, muitos deles provenientes de uma horta que cultiva ao lado restaurante e de fornecedores locais, entre quais um matadouro, onde sabe a origem dos animais cuja carne utiliza.
O “mar e montanha”, tão presente na cozinha da Catalunha, marcou dois dos três pratos que apresentou, sendo que o primeiro, um arroz cremoso de camarão, preparado à maneira de um risotto, tinha como curiosidade a utilização de uma “cebola negra”, já assada quando acrescentada ao refogado. Depois, uma apetitosa combinação de enguias grelhadas no Josper com pancetta assada lentamente e por fim o tutano de osso de vitela com ostras e os típicos calçots catalães.
Os convidados seguiram com especial atenção as apresentações dos seis chefes portugueses e espanhóis
Para terminar a sessão da manhã, subiu ao palco Andoni Luís Aduriz, um dos mais conceituados chefes do mundo, conhecido pelo enorme nível de inovação que consegue manter no Mugaritz (duas estrelas), desde finais dos anos 90, com criações que influenciam chefes um pouco por todo o lado. Como é habitual, o chefe basco, excelente comunicador, prendeu a atenção da assistência com uma exposição onde realçou o difícil processo de estar na vanguarda, com uma sucessão de tentativas e erros que levam ao resultado final. No teste ao pratos do Mugaritz (“todos os anos apresentamos umas 100/150 propostas”, sublinhou Aduriz), participam não só cozinheiros, mas também gente de profissões tão diversas quanto sociólogos, filósofos ou publicitários. Um vídeo mostrava esse processo de teste, neste caso tendo à mesa Ferran Adrià, com quem Aduriz trabalhou, no El Bulli, nos anos 90, antes de abrir o Mugaritz.
Excelente comunicador, Andoni Luis Aduriz fez uma apresentação em que explicou o processo criativo do Mugaritz
O chefe basco apresentou então alguns dos seus últimos pratos, realçando o carácter de imprevisibilidade e de descontextualização que marcam a sua cozinha, que o levou, já há muitos anos, a retirar a estrutura clássica dos menus (entradas-peixes-carnes-sobremesas), inadequada para o que faz. Foram então vistas complexas preparações de bolhas solidificadas, cabeças de alho glaceadas (previamente banhadas em cal) ou até cannellone “vivo” (com chia germinada) recheado com lavagante (morto), entre outros exemplos que provocaram fortes aplausos entre quem assistia.
Veio então a pausa para almoço, em que não faltou Estrella Damm à pressão e também garrafas de Inedit, a cerveja criada especialmente por Ferran Adrià e a sua equipa para a empresa catalã. Acompanhavam pratos de Kiko Martins, como o Ceviche Puro (peixe branco, puré de batata doce, cebola, algas e “leite de tigre”); Taco de Tártaro d'O Talho (novilho, mousse de rábano e taco); Mini Sandes Surf And Turf (lombo de porco preto, camarão e pão de batata doce); Causa de Polvo BBQ (polvo assado, puré de batata preto, cebola assada e courato); Chocolate, Amêndoa e Banana (bolo de banana, cremoso de chocolate e amêndoa, caramelo salgado).
A pausa para almoço, com pratos de Kiko Martins e cerveja Estrella Damm, proporcionou momentos de convívio e conversa entre os quase 400 convidados presentes
Tudo devidamente apreciado pelos convidados, que conversavam animadamente. Entre os presentes, estavam vários chefes, como André Lança Cordeiro, António Nobre, Bertílio Gomes, Carlos Fernandes, Diogo Rocha, Hans Neuner, João Sá, José Avillez, Luís Gaspar, Marlene Vieira, Miguel Castro e Silva, Miguel Laffan, Milton Anes, Nuno Barros, Paulo Pinto, Pedro Mendes, Pedro Pena Bastos, Tiago Bonito, Tiago Feio e Vítor Areias.
A seguir ao almoço, foi a vez de João Rodrigues trazer a palco o seu trabalho e também muitas interrogações que se prendiam com o tema do congresso. Salientando as realidades dos dois países ibéricos, com a Espanha com uma cozinha de vanguarda famosa mundo fora e Portugal bastante mais desconhecido internacionalmente, o chefe do Feitoria, do hotel Altis Belém (uma estrela Michelin), falou sobre vários problemas que encontra, desde a dificuldade em ter bons fornecedores que também sejam confiáveis em termos de regularidade, no facto de só recentemente muitos chefes terem espaços onde consigam mostrar a sua cozinha, das melhores formas de renovar a tradição ou de ter oportunidade para o processo de “experimentação-erro-nova tentativa” (de que falava Aduriz) ou se haverá capacidade dos nossos chefes avançarem em conjunto ou se, pelo contrário, haverá antes uma soma de caminhos individuais.
João Rodrigues mostrou através de vários pratos a sua visão do que considera essencial na cozinha portuguesa
Na parte prática, João Rodrigues, até pelo facto de trabalhar num hotel onde há muitos clientes estrangeiros, evidenciou nos pratos que apresentou uma tentativa de “explicar” a quem não nos conhece algumas características da cozinha portuguesa. Foi o caso do “Como se fosse um Bacalhau à Brás”, em que o típico prato é desconstruído numa emulsão de bacalhau, sames e línguas estufadas, uma gema panada com azeitona desidratada, batata palha “normal” e rebentos de salsa. O chefe do Feitoria colocou a sua versão, na qual é pedido ao cliente para misturar à mesa os diversos componentes, ao lado do prato tradicional. Uma maneira interessante de se distinguir os sabores.
O segundo prato também partiu sobre uma reflexão. O chefe lisboeta considera que se está a valorizar bastante mais os vegetais e a maldiçoar o mundo animal. Porém, para ele, o mais importante é a qualidade de ambos e o rastreamento da sua origem. Este prato, que apresentou, evoca também as memórias de infância de João Rodrigues, quando, no dia da matança do porco, se grelhavam de imediato as miudezas, na fogueira. O chefe decidiu criar um prato em que o mundo vegetal se sobrepusesse ao animal e apostou num coração de alface grelhado, sumo de beterraba a simular sangue, um simples presa de porco, queimando gordura para trazer à mesa o cheiro da fogueira original da matança. No terceiro prato, uma homenagem ao arroz português proveniente de Alcácer do Sal, no encontro da água doce com a salgada, com bivalves menos utilizados (bomboca, amêijola, berbigão) e a sua “água”, e ainda um inusitado junco. “O interior parece o coração do palmito”, explicou João Rodrigues. Por fim, um prato inspirado no cozido à portuguesa, com terrina de cabeça de porco e outros enchidos em puré, assim como feijão e nabo.
Henrique Sá Pessoa fez uma apresentação baseada nos produtos açorianos que o têm fascinado nos últimos anos
Para completar a presença portuguesa no Congresso Estrella Damm, faltava Henrique Sá Pessoa. Que não veio só, já que também subiram ao palco uma grandiosa mesa com peixes e mariscos dos Açores e ainda Pedro Bastos, da Nutrifresco, especialista renomado em tudo o que se pesca em Portugal. O chefe do Alma começou por explicar que, por motivos familiares, há cerca de oito anos passou a visitar mais os Açores e descobriu a enorme riqueza dos mares de lá, com cracas e cavacos, encharéus, vejas, lírios, bicudas, salmonetes-do-fundo (ou escamudos), atum serrajão, entre vários outros. Por outro lado, o seu menu Costa a Costa, que inaugurou na altura do último Peixe em Lisboa (onde Sá Pessoa se apresentou), em Abril, tem tido uma grande aceitação e ele decidiu que o iria renovando com peixes sazonais.
Enquanto Sá Pessoa cozinhava, o especialista Pedro Bastos fez uma intervenção a mostrar a riqueza do mar dos Açores, tendo ao lado uma mesa com peixes e mariscos do arquipélago
Além do que vem do mar, também muitos produtos da terra açoriana têm deslumbrado Henrique Sá Pessoa e, por isso, o prato que decidiu apresentar tinha também no famoso ananás da região um dos pontos fortes. O ananás foi assado ao sal e reduzido a puré, sendo depois conjugado com pickles de algas, águas de mexilhão e de percebes, bem com os próprios bivalves e ainda cavala marinada e mais algas. Enquanto o chefe do Alma preparava o seu prato, Pedro Bastos fez uma interessante apresentação das características do mar dos Açores e de algumas das muitas espécies que ali vivem, destacando a rara cavala-da-Índia (ou peixe-serra, como é conhecido em Cabo Verde, ou wahoo, em inglês), mais habitual em águas tropicais.
Chegou então a altura de encerrar as apresentações com Albert Adrià, chefe catalão que fez grande parte da carreira ao lado do irmão Ferran no lendário El Bulli, onde esteve 23 anos, para nos últimos tempos se lançar numa série de restaurantes próprios em Barcelona, sendo o Tickets o mais famoso- “recebemos mais de um milhão e meio de pedidos de reserva por ano”, revelou. A sua reflexão sobre o tema do congresso começou por incidir sobre a ideia de “tradição” e dos perigos que ela pode implicar, nomeadamente de dois dos elementos que Adrià menos aprecia, a intolerância e o imobilismo. O chefe catalão também salientou que há tradições boas e outras más, dando como exemplo destas últimas a escravatura, o racismo ou os maus tratos infantis. E também que aquilo a que chamamos tradição está sempre em evolução. “O sushi que fazemos hoje no ocidente pode vir a ser visto como uma tradição daqui a uns anos, ou o abacate ou o salmão, que quando eu comecei quase não se utilizavam. Eu próprio, daqui a cem anos, poderei ser visto como tradicional”, afirmou.
Albert Adrià fez uma apresentação que incluiu reflexões sobre tradição e vanguarda, demonstração de vários pratos do Tickets e ainda revelou como vai ser o ser novo e espectacular restaurante
Para Albert Adrià, a criatividade está dependente de vários factores, mas ele salienta que há três fundamentais: “money, money e money”. “Com dinheiro, posso ter equipa, espaço e tempo para criar pratos, testá-los e apresentá-los bem”, resumiu. Quem estava na assistência teve então oportunidade para ver imagens do que virá a ser o Enigma, o novo restaurante do chefe, cuja abertura deverá acontecer dentro de poucas semanas, e que terá um espaço de 700 m2 e apenas 24 lugares.
O chefe entrou então na parte final da sua apresentação mostrando uma série de pequenos pratos do Tickets, não recorrendo, como realçou, a equipamentos sofisticados, como tosta de biqueirão e taramá (versão 2015), lulinhas recheadas com pancetta, aproveitamentos de atum e de carne wagyu chilena e vários outros. No final, fez questão de chamar a atenção de que aquela não era necessariamente a cozinha de Albert Adrià mas sim a cozinha do Tickets, desenvolvida por ele e por elementos da sua equipa de acordo com o conceito do restaurante.
A assistência manteve-se atenta durante toda a jornada, que encerrou com o período de perguntas
Antes de se dar por encerrada a jornada, ainda houve um pouco de tempo para algumas perguntas aos seis chefes, moderadas por Miguel Pires, do Mesa Marcada, que conduziu todas as apresentações, tendo ficado bem patente entre os presentes a importância de se realizarem encontros como este, não só pela qualidade das apresentações e pelo que se aprende com elas, mas também por proporcionarem um maior conhecimento entre os chefes de Portugal e Espanha. Para ano, esperemos, há mais.
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