Receita de vieira num à Brás, do chefe Miguel Laffan. Foto roubada (por mim, para este post) do Mais Olhos que Barriga, de Alexandra Prado Coelho
Artigo publicado originalmente na edição de Maio/Junho de 2013 da revista "Comer"
Estão por todo o lado e hoje os clientes geralmente reagem bem a eles, embora nem sempre tivesse sido assim. Falamos de pratos que remetem para uma tradição portuguesa de cozinha regional, mas onde os chefes seus autores introduziram modificações, adaptando-os à contemporaneidade, recorrendo as novas técnicas e métodos de confecção e de apresentação. Mas a matriz, a raiz portuguesa, estará lá, segundo defendem os seus criadores, e esta presença da nossa memória de sabores aumenta as probabilidades de serem bem sucedidos, sobretudo entre os clientes de espírito mais aberto à criatividade culinária.
Para compreendermos melhor este processo e o que ele implica fomos falar com Maria de Lourdes Modesto, a figura mais influente da cozinha portuguesa das últimas décadas, e três chefes que, há 15 ou mais anos, estiveram na linha da frente da adaptação de receitas tradicionais portuguesas aos tempos actuais: Vítor Sobral, Fausto Airoldi e Miguel Castro e Silva.
A autora da “Cozinha Tradicional Portuguesa” não vê perigo em que haja adaptações de receitas típicas “desde que o chefe assinale bem o que fez de diferente” e que os clientes conheçam bem a original para que não haja “confusões”. Porém, Maria de Lourdes Modesto considera preferível não recorrer muito às denominações consagradas, dando como exemplo o “à Brás”, hoje muito usado com ingredientes vários como vegetais, cogumelos, aves ou outros peixes que não o habitual bacalhau. Para ela, o bacalhau à Brás “é uma receita perfeita, completa, bonita, não uma base para ser usada a torto e a direito”. E quando perguntada sobre qual o chefe cuja cozinha, na sua opinião, melhor demonstra a presença da matriz portuguesa, ainda que actualizada, não hesita um segundo: “Vítor Sobral, sem sombra de dúvida”.
Ora o chefe da Tasca da Esquina, em Lisboa e em São Paulo, e da Cervejaria da Esquina, na capital portuguesa, reconhece-se nesta “matriz” como ponto de partida para os pratos que cria. Mas tem cuidados especiais com ela, dependendo dos clientes. “No Brasil, por exemplo, não posso variar muito, talvez só na apresentação. Quando é bacalhau à Brás tem mesmo que ser bacalhau à Brás, porque na sua grande maioria é disso que os clientes brasileiros estão à espera”, explica Vítor Sobral. Já em Portugal, partindo do princípio que os clientes estão mais familiarizados com as receitas originais, que praticam em casa ou encontram em restaurantes tradicionais, permite-se fazer mais variações. “Aqui, se quiser”, considera, “já me poderia dar ao luxo de fazer o meu bacalhau à Brás…”
Porém, Sobral afirma que nunca perde de vista a tal matriz portuguesa e acha que isso é não só uma marca do seu estilo como algo que os clientes apreciam. “Basta começar com um refogado com azeite, cebola, alho e vinho branco e o prato, por muito que depois o modifiquemos, já estabelece uma ligação que o cliente vai reconhecer. E há toda uma série de produtos que estão permanentemente na nossa memória de sabores, pão, enchidos, ervas aromáticas, peixes, eu sei lá, cuja presença no prato é imediatamente identificada como portuguesa”, conclui.
Para Fausto Airoldi a questão da matriz portuguesa é fundamental. Tanto que acaba de lançar um livro, “Cozinha com Identidade”, em que parte de uma série de bases bem portuguesas para depois desenvolver receitas próprias. São sopas, açordas, migas, escabeches, arrozes, feijoadas, doces de ovos, entre outros, em dezenas e dezenas de receitas criadas por este chefe que actualmente se dedica à consultoria em Macau, mantendo-se à frente da Associação de Cozinheiros Profissionais de Portugal, onde também dá aulas.
“Usar produtos portugueses é importante, mas é preciso que a base da receita também o seja. Se fizermos McBifanas, sushi alentejano ou pizza com ingredientes transmontanos não me parece que a matriz portuguesa esteja lá, já se perdeu a raiz…Uma coisa é inovação dentro da tradição outra é deturpação”, sublinha. E nessa inovação dentro da tradição, Airoldi considera que as técnicas modernas não são um problema, antes podem ajudar a conseguir melhores resultados: “É o caso das cozeduras a baixa temperatura, que reproduzem de alguma maneira os cozinhados lentos do tempo das nossas bisavós. E se há 50 anos não se sabia quais as temperaturas adequadas para cozinhar certos ingredientes, como se nota em certas receitas de mariscos e peixes, hoje a parte científica ajuda a chegar aos pontos certos, com muito melhores resultados”.
Falta agora falar com Miguel Castro e Silva, actualmente à frente do Largo, de dois restaurantes De Castro, todos em Lisboa, e ainda um outro de mesmo nome em Gaia. Apesar de hoje estar em Lisboa, este chefe é um portuense de gema e foi na sua cidade natal que conquistou fama, sobretudo no Bull & Bear. “O Porto é uma cidade mais conservadora e quando eu comecei era considerado um bocado como um provocador. Fazia, por exemplo, uma espécie de revisão das tripas à moda do Porto com o feijão desfeito num puré…Havia quem rejeitasse completamente, mas também clientes que adoravam e falam delas até hoje”, conta.
Apesar de afirmar nunca ter tido essa preocupação, a verdade é que Castro e Silva é actualmente identificado como um cozinheiro com uma forte ligação à cozinha regional portuguesa. “Aquilo que era uma provocação há 20 anos, sempre que se mexia numa receita tradicional, hoje é visto como normal. Por muito que utilize novas técnicas ou faça algumas modificações, a minha base é cada vez mais a cozinha das várias regiões portuguesas, que é fantástica, e creio que quem gosta do que faço sente essa ligação permanente. Não digo que esse tenha que ser o estilo de toda a gente, mas para mim é o que funciona”, conclui.