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O triunfo da aliança entre um chefe e um produtor

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A aliança entre a alta cozinha e os pequenos produtores é das mais benéficas que pode existir. Trabalhando ambos para nichos de mercado em que o preço, sendo importante, não assume a preponderância que tem para quem se move nos segmentos maioritários, podem apresentar pratos que servem de indicadores para a globalidade do mercado. Um pouco como a Fórmula Um faz para a indústria automóvel ou a alta costura para o sector têxtil. A título de exemplo, lembro que em Portugal isso aconteceu no caso da flor de sal no início da década de 2000, primeiro “apadrinhada” pelo chefe Joaquim Figueiredo, então na Bica do Sapato, depois por muitos chefes de topo, e hoje à disposição dos consumidores nos supermercados.

 

Vem isto a propósito da já muito falada, neste blogue, Sinfonia de Citrinos que o chefe Vincent Farges apresentou pela segunda vez no sábado, na Fortaleza do Guincho, usando produtos como os aqui referidos pelo Miguel Pires, provenientes dos pomares que Anne e Jean-Paul Brigand cultivam no litoral alentejano há quase dez anos. Para mim, e creio que para a grande maioria dos presentes, que preenchiam por completo os 50 lugares do restaurante, foi um momento de descoberta, mostrando como pode ser complexo um mundo que eu tinha arrumado em laranjas, limões, limas, toranjas, tangerinas, clementinas e afins, com um ou outro exotismo de kumquat ou yuzu. Mesmo bergamota, só no chá Earl Grey, que, aliás, não é dos meus preferidos.


Todas este meu “conhecimento” desabou logo à entrada da sala do restaurante, onde em três magníficas prateleiras (foto em cima) estavam distribuídas mais de quatro dezenas de variedades de citrinos, cada um mais intrigante do que o outro, com a sua diversidade de formas, cores e aromas. Ainda antes de nos sentarmos à mesa, o talentoso Paulo Francisco (foto e, baixo), responsável pelo bar do hotel há mais de 12 anos, já nos tinha dado uma amostra, num óptimo cocktail à base de gin, yuzu e uma fatia de pêra cidra, que, por recomendação de Vincent Farges, comeria por inteiro, com casca e tudo.


Quanto ao jantar, terá sido um dos mais arriscados de que me lembro, com equilíbrios entre ingredientes que por vezes resultavam em cheio, outras nem tanto, mas tudo num grau de qualidade que dificilmente se encontra, mesmo fora de Portugal. Resumindo, diria que gostei muito dos pratos que combinavam mariscos com citrinos e menos dos dois de carne. Para despachar logo o lado mais negativo do jantar, que afectou grandemente a minha disposição na hora das sobremesas, diria que o pior foi a demora entre os pratos, compreensível quer pela extensão quer pela dificuldade do menu, mas sempre impossível de ignorar. Também as harmonizações com os vinhos da Quinta Nova de Nossa Senhora do Carmo, cujo enólogo Jorge Alves esteve presente, nem sempre resultaram, sendo de novo os pratos de carne, sobretudo o foie gras, a que menos me agradou. Seja como for, fiquei muito satisfeito por ver que, apesar da longa duração da refeição, no final reinava a boa disposição entre os comensais que encheram a casa.


O início do jantar foi arrebatador, com três pequenas entradas (na foto de abertura do post) acompanhadas por champagne Taittinger Brut Prestige Na primeira, finas lâminas de cidra (tradução de “cédrat”) medica, ouriços do mar, puré de cidra Mão de Buda, uma montagem radical em que as texturas valiam tanto quanto os sabores. Depois, carabineiros num ponto perfeito com supremos de toranja Ruby Star, cacto mexicano Nopal e pimenta Timut. Não conhecia nada disto, mas achei tudo muito bem ligado e cozinhado. Por fim, outra grande combinação com pérolas de ostras da Ria Formosa perfumadas com sumo do citrino Dragão Voados (Poncirus), shiso verde e caviar.

 


Os dois pratos seguintes seriam muito bem acompanhados pelo branco Pomares Moscatel Galego 2012, começando com um aveludado de zestes de yuzu, salpicão de pêra cidra com paprika e riewele (um tipo de massa alsaciana), com barriga de atum marinada com yuzu, condimento de sésamo, soja, yuzu e hanaho, num prato muito complexo em que para mim se destacou a temperatura tépida como elemento essencial para o funcionamento em conjunto. Mais um equilíbrio delicadíssimo no miolo de sapateira perfumado com cascas de lima da Pérsia amarela, fina geleia de gengibre e kinome, um tipo de hortelã japonesa, e papaia (foto em baixo), onde ficou brilhantemente demonstrado como se deve evitar que os citrinos se imponham, antes se conjuguem com o restante.


As coisas começaram a correr menos bem no prato seguinte, lombos de bacalhau assado, supremos de buntan hirado (uma cimboa, ou “buntan” em japonês, originária de Hirado, uma aldeia perto de Nagasaki) e suas folhas tenras, com azeite, molho de champagne com zestes de buntan hirado (foto em baixo). Não gostei muito porque para mim, como português, o bacalhau precisa de um ponto de sal mais elevado. Não há nada a fazer, sinto sempre que falta qualquer coisa nestes “meia-cura”, por muito bem cozinhados que estejam, como era o caso. Mais interessante o lagostim salteado, maçã golden com especiarias doces, compota de bergamota e limão Meyer, molho cremoso, apesar de, como já disse, não gostar lá muito de “Earl Grey”…Estes dois pratos foram acompanhados por um dos topos de gama da Quinta Nova, o Mirabilis, na sua bonita garrafa “Ancienne Bourgogne”, neste caso o branco Grande Reserva 2012, que se harmonizou muito bem.


O mesmo já não posso dizer do tinto Mirabilis Grande Reserva 2011 (que, além do mais, me parece ainda muito novo para ser bebido), que acompanhou os pratos seguintes e que não me pareceu nada adequado para o foie gras salteado com soja, algas frescas e zestes de cidra Robs El arsa (conhecida em Marrocos como “pão do pomar”), e consommé ligeiro. Não gostei da forma como o foie gras foi cozinhado e ainda menos do consommé, que tinha todo o sal que tinha faltado ao bacalhau…Também desequilibrado, devido a uma pimenta da Tasmânia (segundo me informaram, porque não vinha enunciada nos ingredientes do prato) que perdurava longamente na boca, quando se comeu um óptimo peito de pato selvagem, com pêra, limequat assada, puré de abóbora butternut e alcaçuz, com geleia de alcaçuz e molho do assado (foto em baixo).


Recordo pouco as sobremesas, embora me tenha agradado mais a primeira, butiá em polpa fresca, sorbet de clementina e biscuit de toranja Duncan. Já mal provei a hana yuzu confitada, suco em chibous caramelizada e a ganache ligeira de chocolate Tainori, cremoso de yuzu e sorvete de maracujá (fotos em baixo). Acompanhou o porto Special Reserve da Quinta Nova.

 

Concluindo, diria que foi uma excelente iniciativa, que mostrou as tais potencialidades da aliança entre chefes de cozinha e bons produtores, bem como o caminho que temos a percorrer nesse sentido em Portugal, um país cuja agricultura é capaz de nos surpreender com alimentos de excelência como estes citrinos. O pioneiro casal que os produz já está inclusive a ser seguido por outros agricultores, como um jovem casal de portugueses, seus vizinhos, que também estava presente no jantar. Tomara que muitos outros, seja nos citrinos seja noutros produtos, vão por esta via e que demonstrem na prática como eles podem brilhar na cozinha, mesmo naquela que fazemos nas nossas casas.

 

Nota: As reclamações sobre as fotografias devem ser dirigidas a Miguel Pires, que foi quem as tirou


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