Não tenho gosto em o constatar, mas a verdade é que à medida que o tempo passa, José Avillez vai ficando mais sozinho. Enganou-se quem apostou que ele podia ser um exemplo, sobretudo depois de ter ganho a estrela Michelin no Tavares, de uma renovação da cozinha portuguesa. Ele é um caso único. Não é que não haja outros chefes portugueses actualizados com a cozinha dos nossos tempos (lembro-me sem esforço de Luís Baena, de Leonel Pereira e de Luís Américo), mas a verdade é que nenhum consegue pôr em prática o que poderia fazer, seja por prudência seja por acomodação seja pelo que for.
Aberto no início de Janeiro, o Belcanto fechou para férias em Agosto. Achei que era boa altura para fazer um balanço do primeiro semestre e fui falar com José Avillez, ao seu Cantinho (que completa um ano em Setembro), que continua um caso de êxito retumbante, com clientes a pedirem para tirar fotografias ao lado do chefe no final da refeição, como eu vi uma extasiada francesa fazer. Esse não fecha nem em Agosto.
“Os primeiros sete meses do Belcanto superaram todas as minhas expectativas em termos de clientes e de crítica, pensei que ia demorar mais tempo a conseguir atingir este ponto”, afirma José Avillez. Tudo parece indicar, já que o tipo de cozinha que faz é a mesma, que o Tavares intimidava uma série de pessoas, que agora apreciam a decoração mais “acolhedora” do Belcanto. “No Tavares, os clientes portugueses eram cerca de 25%. No Belcanto, são uns 70%”, adianta o chefe, satisfeito por ver muita gente que dizia não gostar “desta cozinha moderna” (alguns até dizem “Nouvelle Cuisine”…), vir agora ao seu novo restaurante e cumprimentá-lo no final e voltar com amigos para conhecer outros pratos.
A frequência de estrangeiros parece estar muito ligada às óptimas críticas que o Belcanto tem tido em vários países, como Espanha (Carlos Maribona e Xavier Agulló, por exemplo), Brasil, França ou Reino Unido. Mas Avillez destaca o caso especial de Frank Bruni, que escreveu no New York Times que no Belcanto tinha tido uma das melhores refeições do ano. “Foi impressionante, todas as semanas tenho uns 50 ou 60 clientes americanos, muitos dos quais me referem esse artigo do Frank Bruni, que teve a vantagem de ficar na Internet”. (Ver aqui)
Mas o cliente estrangeiro que mais impacto teve no período de abertura não foi nenhum crítico, foi o consagrado chefe basco Andoni Luís Aduriz, do Mugaritz, que jantou no Belcanto, aquando da sua vinda ao Peixe em Lisboa. Avillez explica porquê: “No fim do jantar, ele foi à cozinha e fez um discurso que nos motivou muito. Disse-nos que o que estávamos a fazer nos transcendia, que era importante para a cozinha portuguesa, para Lisboa, para Portugal. Depois disse, ideia que repetiu numa entrevista ao “Público”, que restaurantes como o Belcanto fazem parte do património de uma cidade e até de um país, dando como exemplo o que representa o seu próprio restaurante ou o Arzak ou o Martín Berasategui para os habitantes de San Sebastian. Lá, mesmo quem não vai a estes restaurantes, ou porque não tem meios ou porque não aprecia o estilo de cozinha, orgulha-se, principalmente perante estrangeiros, do que eles representam para a região”.
Por falar em Mugaritz, é lá que David Jesus, o braço-direito de Avillez desde os tempos do Tavares, vai passar parte das suas férias. Outro membro da equipa do Tavares que ganhou a estrela Michelin, o japonês Atsushi Murata fará o mesmo no Noma. Outros dos oito elementos da equipa de cozinha aproveitam este mês de férias para fazerem curtos estágios em restaurantes espanhóis como Quique Dacosta, em Denia, e Aponiente, em Cadiz, do chefe Ángel Léon. E também em Portugal, no Ocean, do chefe Hans Neuner, no Algarve. A equipa de sala vai também passar pelo Mugaritz, pelo Arzak e Martín Berasategui, indo depois fazer uma “viagem de estudo” pela zona de vinhos de Bordéus. “Achei fantástica a atitude da equipa do Belcanto. Apesar do cansaço do período de abertura, eles prescindiram de metade das férias para irem aprender noutros restaurantes”, orgulha-se José Avillez.
Ele próprio vai estar pelo Mugaritz, mas entretanto também já fez as suas viagens de estudo, em Paris e Itália, com ida à Osteria Francescana, em Modena, o três estrelas do consagrado Massimo Bottura, quinto melhor do mundo na lista da “Restaurant”. Nos primeiros seis meses do ano, o chefe participou em diversos eventos no estrangeiro, com destaque para o Madrid Fusión, a participação na exposição da artista plástica Joana Vasconcelos em Versalhes e, mais recentemente, no festival Arco Atlântico, em Gijón, ao lado de prestigiados chefes espanhóis da sua geração, acontecimento relatado por Carlos Maribona neste post no Salsa de Chiles.
E, quando reabrir a 4 de Setembro, que novidades trará o Belcanto? José Avillez ainda não adianta muito, mas garante que não está “prisioneiro da novidade”, obrigando-se a apresentar pratos novos de qualquer maneira. “Estou mais interessado em obter consistência naquilo que apresentamos, tentar que todos os pratos fiquem sempre o melhor possível nos mínimos detalhes. Os pratos novos surgirão naturalmente”, considera. “Num restaurante que há 40 anos faz os mesmos pratos é natural que haja uma enorme regularidade, mas quando fazemos receitas novas num restaurante novo como o nosso, todos os dias temos que dar a máxima atenção a tudo. Se cozinhamos um robalo a 54ºC, basta haver uma variação pequena para o resultado já não ser o mesmo, arriscamo-nos até a que fique cru.”
“Para mim”, prossegue, “os pratos só envelhecem quando são cozinhados todos os dias, é preciso ter uma continuidade, embora tenhamos que estar atentos à reacção dos clientes e não cozinhar só para nós e meia-dúzia de críticos. Há um prato de que gosto bastante e que foi muito elogiado pelos críticos, o arroz de cabidela vegetal, em que o sangue é inteiramente substituído por sumo de beterraba, mas os clientes reagem mal mesmo quando lhe explicamos isso. A palavra “cabidela” é mais forte…. É claro que se lhe chamasse “risotto”, venderia dez vezes mais, mas prefiro tirá-lo da carta. São ajustes que vamos fazendo”.
Apesar da importância que dá à continuidade, já há algumas ideias novas sobre as quais está a trabalhar. “Quero fazer um prato que ofereça ao cliente sete experiências diferentes, sete colheradas ou garfadas em que cada uma seja distinta da outra. Há pratos muito bons, como o bacalhau à Braz, por exemplo, em que, se não fossem as azeitonas e a salada que geralmente o acompanha, seriam iguais da primeira à última garfada. A minha ideia é fazer um prato que seja o oposto. Vamos ver se consigo.”
Outro aspecto importante que Avillez quer desenvolver nesta nova temporada do Belcanto é atingir um nível elevado em pratos aparentemente simples e conhecidos. “Na Osteria Francescana”, exemplifica, “talvez o prato de que mais gostei não tinha nada de técnicas modernas ou inovação. Era um tagliatelle com ragoût, que estava uma perfeição. Gostaria de conseguir atingir os mesmos resultados, a mesma alma, com pratos da tradição portuguesa, que muitas vezes estão cozinhados de uma maneira que não nos deixa descobrir todas as suas potencialidades”. Aliás, José Avillez quer que no próximo ano ele e a sua equipa dêem um “mergulho no país real” percorrendo várias zonas de Portugal em busca de experiências, receitas e produtos que possam depois reinterpretar no Belcanto.
Falta saber se, em plena “crise”, um restaurante de topo como o Belcanto se aguenta bem. “Quando abrimos já sabíamos qual era a situação. Teria sido pior se tivesse sido há dois anos, quando ainda não se previa que a crise fosse tão forte”. Mas as taxas de taxas de ocupação deixam o chefe satisfeito. “Ao jantar devemos andar quase no pleno, para aí uns 95%. Ao almoço é mais incerto, tanto temos a casa cheia como várias mesas vazias”. Mesmo assim, o chefe admite que restaurantes como o Belcanto dificilmente dão muito dinheiro, ao contrário do que por vezes se julga. Basta dizer que o restaurante emprega 18 pessoas para servir um máximo de 45 lugares. “Felizmente estou envolvido noutros negócios e actividades que me dão suporte financeiro, como o Cantinho, o catering, programas de televisão, publicidade, eventos, etc. Senão seria difícil. Mas creio que essa é a realidade da grande maioria dos restaurantes de topo em todo o lado”, diz.
Embora não queira que lhe colem rótulos, como o de “cozinheiro vanguardista”, nada indica que José Avillez vá mudar de caminho. “Compreendo as razões de mercado que levam muitos chefes para soluções mais fáceis”, conclui, “mas depois não se pode querer ter determinada imagem, sem ter o trabalho, os custos e a dose risco que esta cozinha exige. Não quero andar à procura de desculpas para não fazer a cozinha em que acredito”. Está tudo dito.
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Belcanto: balanço, pausa e futuro
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