Foi já aos 34 anos de idade que o arquitecto Leopoldo Garcia Calhau decidiu mudar de vida. Estávamos em 2009 e ele achou que seria na cozinha que se iria realizar profissionalmente, trocando os ateliers por cursos e estágios que o preparassem para cumprir o objectivo de ter um restaurante seu. Depois dos estudos e de estagiar com José Avillez e Ricardo Mourão (hotéis Altis), em 2014 abriu na Parede o restaurante Sociedade, logo bastante falado. Após dois anos, por razões pessoais, vendeu este restaurante e concentrou-se no Café Garrett, situado no átrio do Teatro Nacional D. Maria, em Lisboa. Ainda não seria aqui, apesar da boa receptividade da crítica, que ele encontraria o seu lugar e, em 2018, nova mudança, aliás, bem radical, saindo da centralidade do Rossio e dos dourados do teatro para uma pequena rua da Mouraria, onde abriu em 2019 a Taberna do Calhau, reproduzindo uma taberna alentejana do Redondo, de onde trouxe todo o mobiliário e elementos decorativos. Foi um projecto muito bem-sucedido e frequentado, até, como todos, ter sido atingido pela pandemia no início de Março, antes de completar um ano de existência.
Nascido em Lisboa há 44 anos, Leopoldo Garcia Calhau tem as suas raízes familiares no Baixo Alentejo, mais precisamente na aldeia de Vila Alva (Cuba), a qual mantém ligação. O gosto pela cozinha veio de uma tia da mãe, que trabalhou em várias casas da região e que a ensinou a cozinhar. Por isso, é natural que a sua cozinha seja fortemente marcada por essas raízes familiares. Embora tenha chegado tardiamente à cozinha, não há dúvida que ele se integrou bem no meio. Basta ver a qualidade e a diversidade dos nomes dos 10 chefes que participaram na Maratona Gastronómica com que recentemente se celebrou o primeiro aniversário da entretanto reaberta Taberna do Calhau: André Cruz, André Lança Cordeiro, Bruno Caseiro, Joaquim Saragga Leal, João Rodrigues, João Sá, José Avillez, Lucas Azevedo, Michele Marques e Vítor Claro.
Na reabertura, a Taberna do Calhau teve que reduzir o número de lugares de 24 para algo entre 12 a 18 (depende dos grupos que vierem), mas Leopoldo Garcia Calhau considera-se um “realista optimista” e por isso já está a avançar para novo projecto, mesmo ao lado do restaurante da Mouraria: um bar de vinhos com 24 lugares, mais 10 de esplanada, que já tem um nome bem sugestivo – Bla Bla Glu Glu – onde também serão servidos petiscos. Aqui, não serão só os sabores portugueses e alentejanos a vigorar, mas também de influência espanhola, francesa, italiana (ele viveu dois anos em Milão como estudante de arquitectura) e belga. Esta última cozinha foi uma descoberta recente, muito devido à sua namorada belga, Audrey, que conheceu na Taberna em Julho passado e de quem espera um filho para breve, o que poderá condicionar a abertura do bar de vinhos, que talvez seja adiada lá para Setembro. É este o convidado desta quinzena do Menu de Interrogação, patrocinado pela Estrella Damm, no âmbito do seu apoio à gastronomia.
Alguma vez se sentiu discriminado na cozinha por ter vindo de outra área?
Ou sou muito desligado ou nunca me apercebi. Apesar de ser arquitecto, em 2010 fui estudar para a Escola do Estoril, fiz um CET em Gastronomia e Artes Culinárias e depois ainda fiz dois anos em Produção Alimentar em Restauração. Não terminei porque considerei o curso mal estruturado, com pouco ritmo e as condições da Escola deixavam muito a desejar. Preferi ir aprender para o terreno e trabalhar.
Sei que fiz um percurso curto até abrir o primeiro restaurante, não fiz uma carreira, não conheci muita gente antes de abrir o primeiro restaurante. Fiz dois estágios e trabalhei quase um ano num restaurante. Aprendi muito, o que queria e o que não queria fazer no meu primeiro projeto.
Voltando ao início, sinto-me muito mais envolvido nesta comunidade de cozinheiros e restauradores do que alguma vez me senti envolvido na comunidade da arquitetura, classe bem mais fechada. Na cozinha podem acontecer coisas como fizemos agora no aniversário da Taberna do Calhau, onde convidei 10 cozinheiros e amigos, dois deles as grandes referências nacionais que tive neste percurso, José Avillez e João Rodrigues, os únicos que até hoje me tiraram o sono quando tive de cozinhar para eles. Na arquitectura nunca foi possível chegar aos “grandes” pois estão lá no seu mundo.
Entre arquitectos e cozinheiros, quem lida melhor com as críticas?
Penso que os arquitectos, pois os cozinheiros são criticados diariamente e fazem “várias obras” todos os dias. O “licenciamento” do cozinheiro, ou dos seus pratos, é constante porque quase todos cozinhamos, nem que seja em casa. Infelizmente, ainda há pessoas que vão a um restaurante para ver defeitos, criticar em vez de ir com o espírito com que vão para uma sala de espectáculos, para se divertirem, estarem à mesa com amigos ou família, terem bons momentos.
Os arquitectos fazem menos obras e, portanto, estão menos sujeitos a críticas. Mas acima de tudo é impossível agradar a todos. Vamos ter sempre pessoas que não nos entendem, não entendem o nosso trabalho nem os pressupostos e depois irão criticar.
A arquitectura é lenta e burocrática.A cozinha é o oposto, felizmente.
Passou do Teatro D. Maria, no Rossio, para uma rua escondida na Mouraria. Ganhou ou perdeu clientes com a mudança? Porquê?
Só há uma resposta, Ganhei.Estou muito feliz pela mudança e processo que levou à construção da Taberna do Calhau.O ano de transição foi preponderante para o que hoje estamos a viver.Mas não esqueço a importância da passagem pelo Café Garrett.Em termos de negócio não foi a loucura, tive muitas dificuldades e a certa altura, eu e a direção remávamos para direções diferentes, embora mantenha uma excelente relação pessoal com os membros da direção da altura.
Continuo a acreditar que é possível ter um restaurante do género num Teatro Nacional ou de outro tipo, mas para isso é preciso mudar muita coisa. O teatro deve estar mais tempo aberto e não fechado como acontecia em boa parte do ano.Os teatros devem estar abertos durante as férias do Natal, Pascoa e Verão .A vida mudou e não devemos continuar como era antigamente.Quase ninguém entrava no teatro apesar de passarem milhares de pessoas por dia à sua frente. O teatro estava escondido e eram quase sempre os mesmos a entrar. O processo de convencer as pessoas a deslocarem-se ao teatro para irem comer bem foi um trabalho árduo. O dia 27 de Maio de 2018 foi um dos dias mais felizes da minha vida. Sem o saber, percebi que a festa de encerramento da minha passagem pelo Café Garrett foi a rampa de lançamento para a Taberna do Calhau.
Quando abriu a Taberna do Calhau contava ter muitos turistas entre os clientes?
Pelo menos desde 2014, altura em que abri o Sociedade, que o meu foco foi sempre trabalhar para os locais, residentes, habitantes, portugueses ou estrangeiros. O turismo é um complemento. Sempre acreditei na fidelização e trabalhei para isso. Se tivermos clientes que vêm e vão, uma vez na vida, tudo bem, mas não há melhor que ver os clientes a voltarem. Tornarmos nos amigos dos nossos clientes, termos relações com quem nos visita é uma grande vitória para quem está deste lado. Ainda hoje me lembro da primeira vez que vi um cliente voltar uns dias depois ao Sociedade, foi uma sensação indiscritível e de maior responsabilidade. A segunda visita é determinante para que haja terceiras, quartas e quintas…Todos os clientes são bem-vindos, e se perceberem aquilo que fazemos melhor ainda.
Como está a ser o regresso do seu restaurante ao “novo normal”?
A Taberna do Calhau vai indo…A vida continua, e é tempo de aceitar aquilo que vivemos e ficar feliz com o que acontece.Os planos mais otimistas levaram a pensar que íamos ter oito clientes em média por dia. Hoje, estamos a fazer mais, estamos a fazer o dobro do previsto, mas um terço do que fazíamos. Não adianta lamentar, vamos acreditar que o caminho agora é mais sinuoso e lá mais para frente apanhamos uma estrada melhor. Tivemos a celebração do primeiro aniversário, onde reunimos 10 colegas/amigos/cozinheiros/chefs e fomos todos felizes nesse fim-de-semana. É possível…
Vê na actual conjuntura o momento certo para os chefes voltarem a concentrar-se no essencial (o restaurante principal e a cozinha), ou, pelo contrário, este é o momento de se dispersarem por outras actividades para poderem sobreviver?
Quem sou eu para fazer considerações sobre colegas, ou pessoas com mais experiencia do que eu e volume de negócio maiores. Penso que é o momento de estarmos focados, controlar custos e avançar como no início. É um momento de conquistas e de passos curtos, ponderados e de análise diária do que acontece na sociedade. É um momento para pensarmos positivo, arregaçarmos as mangas e irmos à luta, é um momento de sacrifícios para todos, trabalhadores, cozinheiros, empregados de sala, copeiros ou sócios-gerentes.
Quais são os projectos que não irão resistir a esta conjuntura?
Não sou adivinho, nem sei se o meu irá resistir.Mas tudo farei para que isso aconteça e muito pelo contrário que evolua no bom sentido. É hora de fazer contas, perceber muito bem os custos de uma operação como esta e os possíveis proveitos. Ao contrário do que as pessoas pensam, é uma área com margens pequenas, sobretudo em restaurantes pequenos. Os custos fixos são muitos, as taxas e impostos nem se fala.
Hoje percebemos que o mercado nacional afinal é muito importante e aliciante. Desde que abri o Sociedade em 2014 que defendo que devemos trabalhar em primeiro lugar para a comunidade residente, nacional ou estrangeira. A fidelização é a chave do nosso sucesso, o sucesso só se alcança com casa cheia e clientes felizes. Agora, o que penso há anos faz ainda mais sentido. Cada um seguirá o caminho que quiser, eu seguirei na mesma estrada que caminho há muitos anos. O caminho da simplicidade, honestidades, genuinidade, do trabalho e resiliência, e da paixão…mais do que um negócio a Taberna é uma casa para as pessoas, a felicidade delas será a minha.
As receitas tradicionais podem ser actualizadas ou isso transforma-as noutra coisa?
As receitas tradicionais são as receitas que servem de base para quase tudo. Mesmo que as reproduza nunca serão a mesma coisa de quem as fez no passado e as repetiu vezes sem conta. Ainda bem que as receitas tradicionais existem e nos chegaram e ainda haja quem as faça regularmente, em casa ou em restaurantes e há 20, 30 ou 40 anos. São o grande pilar da cozinha que fazemos na Taberna do Calhau, direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente, é lá que vamos buscar a inspiração.
Uma actualização pode ser considerada uma versão, portanto prefiro dizer que me inspirei numa receita tradicional e não dizer que é o próprio prato tradicional. No que toca às memórias e hábitos, as pessoas são muito conservadoras e é preciso não ferir suscetibilidades. Sempre gostei de olhar para o passado ou o velho para construir o agora, o novo. O novo e o velho sempre conviveram bem na arquitectura e também na cozinha.
Há alguma cozinha de outros países que lhe interesse e que o possa influenciar?
Claro que sim, embora possa não parecer. Mas a simplicidade da comida Italiana tem muito a ver com a cozinha do sul de Portugal, a cozinha espanhola e o seu lado prático, a cozinha francesa e mais recentemente a cozinha belga, a grande descoberta do último ano, em parte por causa da Audrey e das visitas que fiz a Bruxelas. Pelo menos, já fiz um prato inspirado em algo que lá comi, Barriga de Porco Bísaro cozida e o seu caldo.
Qual foi a primeira coisa que comeu (e onde) na sua primeira ida a um restaurante após a reabertura?
Foi durante a primeira saída de Lisboa, por coincidência ao Alentejo e a acompanhar as visitas do João Rodrigues para o Projeto Matéria. Comemos Cação de Coentrada “à do” A Maria, no Alandroal, e depois comemos Pezinhos de Coentrada, entre outros petiscos, na Mercearia Gadanha, em Estremoz.
Fotografias: @octolumi. Pratos da Taberna do Calhau
Patrocínio:
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