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O Almeja de João Cura esteve cá em casa

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Rafael Tonon (autor convidado)*

Almeja_Porto.jpg

O chef João Cura conseguiu unir dois mundos em seu charmoso espaço no meio do burburinho da rua Fernandes Tomás, na Baixa portuense: o dos desbravadores (em inglês, os tais ‘adventurous eaters’) e o daqueles que buscam conforto a cada garfada. Dois universos difíceis de conjugar em uma mesma mesa. Mas o chef tem a proeza de fazer sabores originais, desafiadores até, parecerem afetivos. 

 

No restaurante que comanda ao lado da mulher, a responsável de sala Sofia Amaral Gomes, isso fica mais evidente por conta da atmosfera que criaram ali: a construção retrô, com piso de azulejos e paredes de pedras dão um certo clima de proximidade, de casa de avó. À primeira vista, alguns pratos podem parecer até desconectados do ambiente (apresentações modernas, plating elaborado), mas é no paladar que tudo encontra coerência.

 

Distante da minha mesa preferida do restaurante, aquela que fica mesmo ao lado da porta, a separar por uma janela de vidro o mundo particular do Almeja do fluxo de pessoas que passam apressadas na rua, tenho que me contentar com a comida do João na mesa de casa — que tem se esforçado para se dividir nas funções de secretária de trabalho e de suporte para as refeições. 

 

O Almeja esteve 15 dias fechados “para digerir o que estava a passar”, como diz João. Depois desse período, o restaurante voltou com take-away, delivery e pratos congelados e prontos para comer, entre tartes (de bacalhau, cogumelos e peixe) e doces, como a sericaia e um pudim de gema. “É o que tem corrido melhor, sinceramente. As pessoas estão a procurar esse conforto, praticidade”, diz. Mas as retiradas e entregas, com pratos que mudam todas as semanas, também têm tido bons resultados (e que João deve manter mesmo com o desconfinamento). 

 

Numa cidade em que “delivery” era uma palavra tão estrangeira quanto os sotaques que (em condições normais) ocupam todo e qualquer metro quadrado da zona da Ribeira, me impressiona a adaptação rápida que os restaurantes portuenses tiveram nesses tempos de pandemia para fazerem chegar seus pratos aos clientes. E o cuidado com que o fazem. A comida chega sempre caprichada, bem embalada, com um ‘bilhetezinho’, um certo carinho tão habitual na cidade.

 

A entrega do Almeja veio mesmo impecável: a manteiga embrulhada por papel pardo e fita, anotações a caneta em cada embalagem (biodegradável!) para indicar os passos, e a sobremesa (conto mais logo porquê) numa embalagem de esferovite térmico com os elementos separados em potes distintos. Na rua, os olhos da menina que tenta equilibrar tudo nos braços sorriem antes da recomendação: “mantenha o gelado no congelador até servir. E esse potinho pequeno com picante requer moderação”, disse-me. Meus olhos sorriram de volta (é assim que mostramos empatia com os as expressões faciais em tempos de máscaras), apanhei o saco e a caixa e agradeci. 

 

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Há muito que gostava de provar o pão de fermentação lenta do Almeja, sobre o qual amigos em quem confio tinham falado com elogios. Textura esponjosa, casca resistente e levemente quebradiça (podia ser um tantinho mais), mas tostado sem medo. Há quem tenha certo receio dos pontos escuros nas cascas, que para mim dão aquele sabor entre o caramelizado e o amargo que me fascinam num bom pão, como esse tinha. A manteiga fermentada da casa combinou bem, com seu sabor delicado.

 

Tão logo abri curioso as embalagens, o katsu sando (aqui, uma boa definição) de cabeça de xara já devidamente partido me convidou à mordida. Interessante a ideia de panar e fritar a cabeça de xara que ficou muito bem acompanhada com um toque de escabeche de marmelo e maçã verde. Na boca, tudo crocante, a fazer barulho entre os dentes: óptima bocada.

 

Parti, em seguida, a tarte folhada de ervilhas e favas, meu prato preferido — e talvez sobre o qual eu tivesse menos expectativas. Era para ser “apenas” um acompanhamento afetuoso, que, no conjunto, pedi mais por uma questão de ter um contraponto às outras opções de carne.

 

Mas que boa surpresa, com a massa folhada a seguir a escola das boas Viennoiseries: leve, crocante, sem gordura residual. E o excelente recheio, com as bolinhas verdes no ponto perfeito de maciez, bem incorporadas ao molho pungente de ervas (estragão, coentros, manjericão), muito fresco, complexo, com togarashi e anchova. Há um interessante e muito bem-vindo cuidado com a acidez nas preparações do chef, algo que me agrada muito.

 

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katsu sando de cabeça de xara

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Tarte folhada de ervilhas e favas

 

Por isso, os pickles que compõem o tártaro de vaca maturada (cenoura, alcaparras, aspargo lacto-fermentado) também parecem providenciais no conjunto. Mesmo a seguir a moderação do jindungo (malagueta), o prato ficou picante de mais: misturei só uma colher de chá do molho à parte com a carne bem picada e optimamente temperada mas mesmo assim o nível de ardor na língua ficou muito marcante. A saladinha de folhas verdes com funcho ao lado ajudaram um bocado. 

 

Para finalizar, fiquei feliz de ter pedido a sobremesa de caril doce com manga e gelado de lima, bem refrescante, especiada. O creme sedoso de caril doce leva um tártaro de manga, bolo de coco infusionado com Malibu e o gelado de coco, que montei sobre a combinação apenas na hora de comer. As camadas de massa filo com caril e o pistácio com pó de iogurte também ajudam nas camadas de textura e sabor — e principalmente na apresentação, que não consegui reproduzir tão bem quanto o chef  faria.

 

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Tártaro de vaca maturada

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Caril doce com manga e gelado de lima

 

Admiro como o João sai do seu lugar comum e se desafia a criar receitas que são menos familiares para ele, por assim dizer, mas mantendo pratos tão tradicionais portugueses na sua ementa — é o caso do arroz de miúdos e cabrito que ainda não provei, mas que devo fazê-lo sentado no Almeja, que volta a abrir hoje, sexta-feira (e, nesta fase, estará aberto apenas de quinta a domingo). 

 

Baseada em uma viagem que fez à Índia, a sobremesa pode não ter um sabor tão conhecido para alguns dos clientes do restaurante, mas carrega um certo gosto afectivo até mesmo para aqueles que nunca pisaram no país asiático. E é esse um talento de João Cura: pensar e criar pratos quase como os feitos pela avó, mesmo que não a nossa. 

 

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Almeja (Porto)

Encomendas pelo telefone: 222 038 120 

De quartas-feiras às quintas-feiras, das 19h às 21h30. Sextas-feiras e sábados, das 12h às 14h30 e das 19h às 21h30.

Para delivery, encomendas até às 17h do próprio dia. Para take-away, ligar 30 minutos antes. Valor de entrega: 3,5 euros (taxa gratis para pedidos acima de 35 euros).

 

 

* Sobre o autor convidado:

Nascido em Campinas, estado de São Paulo, Brasil, em 1982, Rafael Tonon é jornalista especializado em gastronomia. Trabalhou como editor na Abril já colaborou para veículos como GQ, Vogue, Elle, entre outros.  É correspondente do Eater (maior portal de gastronomia dos EUA), para onde acaba de escrever um guia sobre o Porto, cidade onde reside actualmente. Em Portugal, é colaborador do Expresso e do Público.

 

Fotos:Rafael Tonon

 

 

Patrocínio:

VinhoemCasa_banner.png

 

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