Se esta crise do coronavírus não nos tivesse apanhado a todos de surpresa, eles estariam na maior azáfama a preparar a abertura do seu restaurante pop-up e a dar os retoques finais no Sangue Na Guelra, esse encontro de reflexão sobre o mundo da gastronomia e do activismo ligado ao tema. Mas este momento perturbante e duro para a restauração e para toda a cadeia de valor a ela ligada, também os atingiu, naturalmente. Porém, estimulou-lhes e criatividade e a capacidade de resiliência e o exemplo disso é o anúncio, nesta entrevista, de um Sangue na Guelra em streaming, para breve, que reunirá nomes nacionais e internacionais.
Para quem é do meio, já percebeu que falamos de Ana Músico e Paulo Barata, a dupla da agência Amuse Bouche que faz estratégia e “comunicação com sabor” e organiza eventos gastronómicos onde procuram marcar a diferença, mexer com a gastronomia nacional e internacional e fugir ao certinho.
Tudo começou com já mencionado Sangue na Guelra, que nos primeiros anos funcionou como um evento satélite do Peixe em Lisboa, e em que reuniram, em jantares, demonstrações e debates, uma série de “Nº2” de alguns dos melhores chefes do mundo. O modelo evoluiu, depois, para o formato de simpósio tendo o Manifesto para o Futuro da Cozinha Portuguesa sido um dos momentos altos da edição de 2017. Neste mês de Maio realizar-se-ia a 4ª edição, entretanto adiada para o final do ano, ainda sem data definida. Em paralelo, e sem descurar a vertente de comunicação, o casal e a sua equipa foram organizando outros eventos, entre eles os jantares Origens, Young Chefs With Guts e o Ritz’s Secret Room.
Quando a pandemia der tréguas e os restaurantes voltarem a abrir dentro da normalidade possível, a dupla acredita que o espírito de ‘guerra' e de sobrevivência dos “projectos mais acessíveis, mais descontraídos e com menos ‘conceito'” terão mais hipóteses de sobrevivência e não tem dúvidas que nascerão projectos que antes poderiam ser vistos como “disparatados” e que no pós-caos poderão fazer sentido.
Esta é mais uma edição do Menu de Interrogação, a rúbrica quinzenal do Mesa Marcada numa parceria com a Estrella Damm no âmbito do seu apoio à gastronomia.
Como estão a viver este momento particularmente difícil para a hotelaria & restauração bem como, inevitavelmente, nos negócios que giram em torno do ramo, como é o caso das agências de comunicação e eventos como a vossa?
AM/PB: Com enorme dificuldade, como não poderia deixar de ser para uma empresa que trabalha, em exclusivo, na restauração. Mas desde o primeiro momento, procurámos sempre ver as soluções e as repostas de que os nossos clientes precisavam.
Como agência de comunicação, o nosso foco foi dar uma resposta pronta, realista e muitíssimo positiva aos nossos clientes: no dia 12 de Março, ao final da manhã, todos eles receberam um email da Amuse Bouche com o que poderiam ser linhas de abordagem adequadas ao contexto, quer do ponto de vista da comunicação e posicionamento, quer do ponto de vista de estratégia operacional, incentivando-os aos serviços de delivery e take away. Claro que boa parte dos nossos clientes não estão activos neste momento, mas uma marca que simplesmente ‘desapareça’ terá mais dificuldades em regressar e marcar uma posição. As marcas activas têm dado uma boa resposta e até percebido que há novas oportunidades no mercado.... Tem sido um trabalho de equipa, de enorme cumplicidade e confiança, e este aspecto, apesar desta crise sem precedentes, é altamente gratificante. Pusemo-nos à prova, agência e clientes, e a prova está a ser razoavelmente bem superada.
Quanto aos eventos, a fórmula passa também por uma enorme capacidade transformadora e criativa. Adiámos o Symposium Sangue na Guelra para Outubro, nos dias 19 e 20. Mas nada será como tínhamos desenhado inicialmente. Será um Symposium diferente, com outras características. Tudo é novo, há novos desafios, novos sentimentos, novas inquietações.
O chef brasileiro Alex Atala foi o cabeça de cartaz do Sangue na Guelra de 2018
É possível ver algo de positivo nesta crise do coronavírus?
AM/PB: Sim, claro. Esta crise está a ensinar-nos imensas coisas… a grande lição é que nada é garantido e que uma entidade desconhecida, altamente sofisticada e invisível, deitou tudo por terra com um sopro. Esta crise tem estimulado a nossa capacidade de resiliência, mas também a nossa criatividade, e isso tem sido um desafio enorme. Reinventarmo-nos, mudarmos de lugar e de perspectiva, é algo de que sempre gostámos os dois, e que nos desafia e estimula, quer enquanto ‘empresários’ e criativos, quer enquanto casal. Gostamos de criar e desenvolver projectos que acrescentam algo à comunidade, à indústria. Só assim vale a pena fazer um Symposium Sangue na Guelra, os jantares Young Chefs With Guts ou um Ritz’s Secret Room. Uma crise como esta, é uma oportunidade preciosa para nos transformarmos, para questionarmos o que andávamos a fazer, imersos que estávamos no turbilhão do dia a dia e das exigências do negócio. Por isso, teremos novidades em breve, fruto deste novo contexto e do que temos aprendido nestes dias.
Na vossa perspectiva, o que vai mudar na restauração depois desta crise passar?
AM/PB: A restauração vai retomar o seu ritmo, lentamente, mas nada será como antes. Acreditamos que os projectos mais acessíveis, mais descontraídos e com menos ‘conceito' terão mais facilidade de se adaptarem e de se reinventarem, pois têm um espírito de ‘guerra' e de sobrevivência mais afinado, que faz parte do seu ADN. Já o fine dining poderá precisar de mais tempo para se reerguer, pois depende muito mais do turismo internacional. Mas não temos nenhuma dúvida de que veremos nascer projectos que até há um mês eram ‘disparatados’ ou impensáveis: depois disto, tudo é possível e tudo poderá fazer sentido. O que mais nos preocupa, pensando na saúde e na vida tão vibrante da restauração independente destes últimos anos, é a sua sobrevivência… perder esta ‘classe média’ e indie do sector, os protagonistas deste novo movimento da cozinha portuguesa, será uma tragédia. Não apenas do ponto de vista da quebra do negócio e do seu impacto social sobre milhares de pessoas, mas também do ponto de vista da criatividade e do trabalho que todos estes cozinheiros vinham a desenvolver nos últimos anos, dando uma pujança criativa à nossa gastronomia sem precedentes. Já os grupos de restauração, com uma outra estrutura organizacional, embora estejam em dor, têm outros recursos e acreditamos que poderão recuperar mais facilmente.
Além do inevitável adiamento, de que forma os actual situação vai condicionar os projectos que tinham em calha, como o Sangue na Guelra e o restaurante pop-up ?
AM/PB: Vem aí um Sangue na Guelra live streaming: juntámos grandes nomes da cena gastronómica nacional e internacional e vamos debater o estado e o futuro da indústria. Vivemos uma situação global, que nos afecta a todos, nos quatro cantos do mundo. Queremos inspirar o nosso país e a comunidade gastronómica, trazer a experiência e a visão de grandes players e cruzar estratégias e pontos de vista. A comida tem este maravilhoso poder de nos unir numa mesma língua, na mesma paixão.… O Pop Up, que já era um projecto muito especial e dirigido à Nova Cozinha Portuguesa e à restauração independente, agora vemo-lo como uma pérola, como uma oportunidade única de fazermos a diferença na vida de muitas pessoas… Voltando à pergunta, não nos sentimos condicionados. Sentimo-nos vivos, num momento excepcional na história da Humanidade… sentimos uma força enorme e a necessidade de fazer acontecer alguma coisa relevante e consequente.
Quem lida pior com as críticas, os chefes ou os jornalistas?
AM/PB: O trabalho dos jornalistas é dizer a verdade. Aliás, os termos ‘jornalismo’ e 'verdade’ são quase sinónimos… e talvez por isso, a classe jornalística se leve demasiado a sério e seja menos aberta a críticas… Os chefs, apesar de lhes ser reconhecido um certo ‘mau feitio’ (não concordamos, obviamente, mas eles sabem que têm esta ‘má fama') e de não gostarem de críticas à sua comida, lidam melhor com observações menos positivas porque no fundo têm um prazer quase infantil em cozinhar e fazer os seus clientes felizes.
Os chefes em Portugal comunicam bem entre si?
AM/PB: Agora um pouco melhor e mais do que há uns anos, sem dúvida. Em 2017, ouvimos muitos e muitos chefs portugueses sobre o que queriam ver debatido no Symposium, no Hub Criativo do Beato. A resposta deles foi unânime: a (des)união da classe. Com o Leonardo Pereira e o Leandro Carreira chegámos à palavra ‘conectividade', embora depois tenhamos evoluído para o tema "Cozinha Portuguesa. E agora?" O que procurámos fazer nessa edição, na qual lançámos, motivados por diversas pessoas ligadas à gastronomia, o Manifesto para o Futuro da Cozinha Portuguesa, foi juntá-los, desafiá-los a trabalharem em conjunto pela primeira vez. Eles propuseram os temas que atravessam na nossa cozinha desde sempre - Sal, Pão, Sangue e Fritura - e organizámo-los em grupos, para trabalharem um dos temas e apresentarem o processo e o resultado desse trabalho num palco comum, sem nomes ‘maiores’ ou ‘menores'. O desafio do Manifesto, apoiado e acompanhado por dezenas de pessoas, entre as quais o Duarte Calvão, a Alexandra Prado Coelho, o José Avillez, o Henrique Sá Pessoa ou o Miguel Poiares Maduro, também tinha esse objectivo: o de unir os cozinheiros e toda a comunidade do sector em torno de uma ideia, uma visão e uma estratégia para a gastronomia nacional. Foi muito intenso, foi muito, muito bonito… Mas muitas outras coisas sucederam na cena gastronómica e também por isso os cozinheiros estão mais próximos, cozinham juntos, procuram-se, são amigos, partilham… esperamos que nada disto se perca, pois agora essa união deve ser mais forte do que nunca.
Acham que a maioria dos chefes e responsáveis por restaurantes em Portugal vêem os jornalistas e bloggers como uma espécie de “fornecedores de divulgação”, pagos com convites e notícias dadas em primeira mão, ou compreendem e respeitam o papel de cada um?
AM: Não, claro que não! Há uns anos, alguns até poderiam ter essa visão, mas as agências de comunicação do sector - e aqui falo da Amuse Bouche em concreto - também têm uma enorme responsabilidade na relação entre cozinheiros e investidores e os media. Fomos jornalista (eu) e fotojornalista (o Paulo) e sempre encarámos a actividade de ‘PR e Comunicação’ como uma continuidade do nosso trabalho de jornalistas: educar para a informação, trabalhar e partilhar a informação… Adoramos o nosso trabalho justamente por isso, porque exige responsabilidade, compromisso, seriedade e saber contar uma boa história. Nunca encarei um jornalista, blogger, meio ou plataforma, como um canal de publicidade gratuita para os nossos clientes ou os nossos eventos. A gastronomia, ainda arrumada, infelizmente, no sector de lifestyle nos meios em geral, é muito mais do que isso: é cultura, é economia, é conhecimento, é sustentabilidade - não é um fait divers. Acredito que aprendemos todos imenso nos últimos anos, agências, jornalistas, chefs, empresários do sector, e que já superámos essas dúvidas e desconfianças uns em relação aos outros.
Tendo trabalhado com tantos chefes e restaurantes aprenderam alguma coisa de cozinha que utilizem em casa?
AM: Com os chefs não aprendi a cozinhar. Com os chefs aprendi a comer e a pensar a comida. Mas nunca mais olhei para o polvo da mesma forma depois do Vincent Farges me ter ensinado a cozê-lo: panela sem água, nem rolha, nem sei lá que mais, só o bicho mesmo, tampa fechada, lume brando, 40 minutos. Desfez-se assim para mim este velho mito! Quem me ensinou a cozinhar foi a minha mãe… ainda lhe ligo, sempre aliás, a perguntar com é que se faz isto e aquilo pela enésima vez… mas ligo não porque não saiba o que lhe vou perguntar, mas simplesmente porque adoro ouvi-la, aos seus cuidados e recomendações, sentir o seu amor puro pelos produtos e pelo acto de cozinhar.
PB: Aprendi algumas técnicas e ‘truques’, à custa de tantas e tantas horas que passei em cozinhas, a observar os chefs… tratar o peixe e filetar, tempos de cozedura, caldos… Mas o que os chefs fazem não se aprende apenas observando… se eles levam anos e anos a afinar e a aprimorar o seu trabalho é porque esse trabalho requer muito mais do que a mera curiosidade. O que verdadeiramente me inspira são as viagens, sobretudo quando fotografava para a revista "Volta ao Mundo". Adoro cozinha asiática, árabe, africana… e nessas viagens aprendi com as pessoas comuns, que cozinharam para mim em circunstâncias muito especiais. Aliás, sempre que viajo, os ‘presentes’ que trago para o meu filho são invariavelmente comida, especiarias, ingredientes, coisas ‘estranhas’… ele também tem boa mão para a cozinha e partilha comigo esta paixão pela comida do mundo.
É possível fazer eventos gastronómicos de grande dimensão em Portugal só com patrocínios privados ou temos sempre que recorrer a apoios de entidades públicas?
AM/PB: Muito antes desta crise, já achávamos que este é o momento certo para investimentos mais sérios e avultados de marcas e entidades públicas em eventos gastronómicos. As marcas poderiam ser mais ousadas neste aspecto e o investimento público implica que haja uma estratégia para a gastronomia portuguesa. E acreditamos que há uma estratégia, mas talvez não ainda totalmente focada e consistente, com objectivos concretos. Ter apoios públicos é muitíssimo importante, pois com esse apoio vem também um selo oficial de qualidade e de compromisso, para além de permitir outras ambições, nomeadamente a projecção da nossa cozinha, tradicional e contemporânea, no mundo. Pode parecer exagerado, mas amamos as marcas que nos apoiam e jamais as vimos como meros Caixas Automáticos que nos ‘dão’ dinheiro. Sem elas, a maioria dos eventos em Portugal não aconteceria e por vezes lamentamos que a imprensa seja tão avessa a dar-lhes voz e espaço na cobertura destas iniciativas, das quais as marcas também fazem parte.
Qual a primeira coisa que vão querer comer fora, quando a quarentena passar e os restaurantes reabrirem? E onde?
AM/PB: Isso é pergunta que se faça??? Marisco e imperiais! RAMIRO!!!
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