Parece claro que a cozinha atravessa a nível mundial um momento de estagnação. Depois da revolução da vanguarda espanhola do final dos anos 90, início dos anos 2000, do espalhar da sua influência um pouco por todo o mundo, não só a nível de técnicas, mas sobretudo de modo de encarar a cozinha, nada de muito excitante aconteceu depois. Alguns deixaram-se iludir com a “cozinha nórdica”, que, já passados uns anos, mostra que apenas legou uma maior importância dada aos vegetais e uma pretensa “simplicidade”, além a moda de chefes a vaguear pelos bosques em busca de ervinhas ou de panegíricos à “pureza” dos produtos locais, estejam na selva amazónica, nos mangais asiáticos ou nas florestas escandinavas. De preferência, todos fermentados, maturados ou defumados até à loucura.
A revolução da vanguarda espanhola, que tinha sido antecedida pela grande revolução da Nouvelle Cuisine de finais dos anos 60 e início dos 70 - centralizada inicialmente em França -, deixou-nos viciados em mudança, em novidade, em tentar descobrir em cada chefe um “revolucionário” que nos iria deslumbrar com as suas criações. Mas tudo indica que nada vai acontecer nos tempos mais próximos. De facto, como já escrevi anteriormente, os chefes parecem mais interessados em aparecer ligados a movimentos ambientais e sociais que lhe trazem “boa imprensa” do que em fazer evoluir a sua cozinha em termos de criatividade. Ou então em abrir segundos ou terceiros (quartos, quintos, o céu é o limite...) restaurantes, mesmo em locais longínquos, seja Singapura, Dubai ou Las Vegas.
Se é verdade que tanto a Nouvelle Cuisine como a vanguarda espanhola vieram dar um justo realce ao papel do chefe como “autor”, também é certo que o exagero foi tal que hoje, mais (ou menos) do que cozinheiros, são “figuras públicas” armadas em “pensadores”, a falar sobre tudo o que lhes perguntam nas inúmeras entrevistas que concedem. Ou deslumbrados com o seu prestígio como “homens de negócios”, a pular de aeroporto em aeroporto, com a última roupa da moda a tapar as tatuagens que lhes conferem a necessária aura de rebeldia, encadeados por ecrãs de smartphones que os conectam com as cozinhas em que nunca estão.
Em Portugal, onde, como já dizia Eça de Queiroz, tudo se copia de fora, este modelo vai fazendo o seu caminho, embora com o habitual atraso. Temos, porém, a desculpa do fracasso empresarial dos chefes que começaram a mudar as coisas por aqui no final dos anos 90, como Vítor Sobral, Miguel Castro e Silva, Joaquim Figueiredo, Fausto Airoldi ou Luís Baena. Receosos com esta perspectiva de restaurantes que poderiam ser muito elogiados por críticos e gastrónomos, mas que não se aguentavam financeiramente, grande parte dos novos chefes que começaram a aparecer na segunda metade dos anos 2000 tomaram como divisa que “antes de tudo, um restaurante tem que funcionar como negócio”. Aliás, muitos deles também tiveram os seus fracassos individuais no início das carreiras, o que só fez aumentar o estrago do receio.
É certo que estes chefes, agora na casa dos 40 anos, fizeram muito pela nossa cozinha, actualizando-a, conquistando estrelas Michelin e outras distinções reconhecidas internacionalmente, ensinando centenas de jovens cozinheiros nas suas equipas. Mas será que ainda podemos esperar algo deles em termos de verdadeira criatividade? Não estou a falar de mais estrelas Michelin, que alguns poderão ainda vir a ganhar desde que mantenham a consistência (tomara que sim), mas daqueles pratos que nos arrebatavam, nos surpreendiam, nos mostravam que se podia ser moderno trabalhando também com as nossas bases e as nossas memórias. Gostaria muito de estar enganado e, se estiver, reconheceria alegremente o meu erro, mas creio que já não há muito a esperar deles. Digo-o sem amargura, agradecendo os óptimos momentos que me proporcionaram (e proporcionam) e o muito que conseguiram alcançar, principalmente num país com a dimensão e as características de Portugal, para mais em anos de grandes crises económicas.
O meu actual pessimismo tem sido atenuado, no entanto, pelos que apareceram mais recentemente e Deus sabe que sou a última pessoa a tecer loas à “juventude”, como se ter poucos anos significasse automaticamente ter criatividade. Ou sequer ser “interessante”. Mas a verdade é que vários deles foram cedo trabalhar para bons restaurantes, alguns fora de Portugal, têm muito mais mundo e informação. Julgo que nem todos estarão interessados na competição da “alta cozinha”, preferindo jogar no campeonato da “bistronomie”, nas neo-tabernas, nos lugares descontraídos e de preço acessível, mas com criatividade suficiente para fazer clientes mais exigentes a esse nível quererem voltar. Lisboa e Porto estão cheios desses pequenos restaurantes bem-sucedidos, alheios ao mundo Michelin, onde gosto muito de ir.
Mas, felizmente, nesta nova geração também há outro tipo de chefes, com outro tipo de ambições, com capacidade de desenvolver projectos de topo num país que está diferente para melhor - sobretudo quando comparado com o final dos anos 90 ou a segunda metade dos 2000 -, com clientes mais abertos às inovações, com muitos turistas que valorizam a criatividade na cozinha. Mesmo sabendo que agora o que vem “lá de fora” não é especialmente inspirador, tenho esperança que sejam eles a dar um novo impulso à cozinha que se faz em Portugal. E, principalmente, que tenham aprendido com as gerações anteriores, gerindo bem os seus restaurantes, mas não se deixando enfeitiçar com os “negócios” ou com a ideia de que ter vários restaurantes bons é mais importante do que ter um só grande restaurante no qual possam mostrar o que realmente valem.
Nota 1: Artigo publicado originalmente na edição de Novembro de 2019 da Revista de Vinhos
Nota 2: Ilustração publicada apenas neste post e não no artigo original