Desde que entrei para o Facebook no início deste ano que estou mais a par de certas opiniões e reacções de um público que vai para além daqueles que se interessam pela gastronomia, nomeadamente da chamada “alta cozinha”. Verifico que é voz corrente considerar que Portugal é “injustiçado” pelo guia Michelin, que beneficia Espanha e outros países e não compreende ou não quer compreender a nossa cozinha. Que se assim não fosse, os restaurantes portugueses ostentariam tantas estrelas como os demais. Ora essas opiniões têm alguma justificação, mas já tiveram muito mais. É assim que vejo, pelo lado positivo. Em primeiro lugar, julgo que é benéfico ter uma classificação independente e credível como é a do guia Michelin, sobretudo num país em que as pessoas não gostam de ser avaliadas, que julgam que todos somos “iguais” - como se na cozinha, no jornalismo, no futebol, na arquitectura ou em qualquer actividade, não houvesse quem tenha mais talento do que outros, seja mais estudioso ou trabalhador do que outros, que tenha mais sorte do que outros.
Aliás, e isso é outro ponto positivo, as estrelas Michelin, que eram quase desconhecidas entre nós no final dos anos 90, quando me iniciei nestas lides “gastronómicas”, que só quase interessavam a um muito restrito grupo de profissionais, hoje estão extremamente mediatizadas e, como se viu esta semana no lançamento do guia para 2018 em Tenerife, quando surge um novo guia a divulgação das suas classificações são acompanhadas ao segundo pela generalidade dos órgãos de Comunicação Social e nas redes sociais. Também me parece positivo que os nossos chefes e donos de restaurantes estejam a perceber melhor como funciona o guia. Não para que façam restaurantes “à medida” dos inspectores Michelin, se é que isso é possível, mas para terem referências, se for esse o caminho que querem seguir. É claro que há muita cozinha além do guia Michelin, muitos restaurantes interessantíssimos que não têm nenhuma pretensão a serem estrelados. Mas se ambicionam essas estrelas, ficam a saber que têm que investir num bom chefe, em equipas de cozinha e sala, em produtos, num conceito coerente em termos de decoração e ambiente, etc etc. Se não, é melhor não entrar neste campeonato e muito menos andar a dar entrevistas tontas (agora, felizmente, já são muito raras) e dizer que o seu restaurante tem como “objectivo” chegar a uma estrela em x anos, a duas em y anos, se calhar até a três em não sei quantos. Acham que uma decoração gira e a sua genialidade empresarial é suficiente. Ah, e, é claro, “bons contactos”...
A plateia que acompanhou o anúncio das estrelas de 2018 no Hotel Abama, em Tenerife, nas Canárias
Mas vamos voltar ao guia deste ano, que é o que nos traz aqui. Fiquei muito satisfeito com a primeira estrela de João Oliveira, do Vista (na foto de abertura a ser cumprimentado por Michael Ellis, director internacional do Guia Michelin), e de Tiago Bonito, da Casa da Calçada, mesmo que esta última tenha sido na continuidade do que o restaurante de Amarante nos habituou há muito tempo e que tem na figura de Adácio Ribeiro, na sala e agora também com responsabilidades na direcção um elemento chave para esta constante qualidade. Claro que fiquei também satisfeito com estrela do Gusto, do Hotel Conrad, que tem o milanês Daniele Pirillo como chefe residente há perto de quatro anos e consultoria do alemão, radicado em Roma, Heinz Beck.
Falei com os três. A estrela de João Oliveira era mais do que esperada (para mim, até já faria sentido no ano passado), mas a verdade é que pude ver como ele estava ansioso na plateia, ao lado do director do hotel Bela Vista, Gonçalo Narciso, enquanto no palco se iam anunciando, por ordem alfabética, as novas estrelas. As mãos não paravam quietas, as pernas sacudiam nervosamente, percebia-se a tensão. Quando foi finalmente anunciado, levantou-se num ápice, abraço em Gonçalo Narciso, e lá foi para o palco. Depois, admitiria a ansiedade, não tinha dado nada como certo, mas estava bastante calmo, nada de manifestações efusivas. Acha que é processo natural numa carreira de quem começou a estudar aos 15 anos e foi estagiar aos 16. Agora, aos 30 anos, a primeira estrela. “Acho que foi muito importante fazer todos os passos da profissão”, sublinhou
Quando voltou do palco recebeu um abraço de Ricardo Costa, o chefe duas estrelas do The Yeatman, com quem trabalhou mais de oito anos, desde os tempos na Casa da Calçada. “Ele fez todo o percurso comigo, desde estagiário, cozinheiro de terceira e por aí fora até subchefe do Yeatman, quando gánhamos a primeira estrela”, conta Ricardo Costa, com uma ponta de orgulho. Mas confessa que não gostou quando o “perdeu” para o Vista, mas que "agora já passou”. (Reflexão à parte: é natural que cozinheiros ambiciosos e com qualidade façam este percurso que João Oliveira fez. Os chefes portugueses têm que aprender a lidar com isso, como já acontece há muitos anos em França. Mas não deve ser fácil e nem sempre o divórcio é propriamente “amigável”).
Com Tiago Bonito falei ao telefone. A mesma calma quando lhe dei a notícia, os mesmos elogios para a equipa e para o hotel que lhe deu as condições para alcançar a estrela, a mesma ideia que o mais importante é trabalhar para a satisfação dos clientes. Aos 31 anos de idade, acha que deu o passo certo quando em Abril trocou o hotel Tivoli Lisboa pela pressão de manter a estrela em Amarante.
Com Daniele Pirillo a conversa foi mais rápida e em inglês, já que ele ainda tem dificuldades em português, apesar de estar há quase quatro anos por cá. Não conheço o restaurante, só estive lá uma vez quando abriu, numa acção para a Imprensa. Mas acredito que tenha a marca profissional de Heinz Beck, que estava em Tóquio enquanto decorria a cerimónia no hotel Abama, em Tenerife, e com dificuldades em saber o que se passava devido ao fuso horário. Mais um a elogiar a equipa, a direcção do hotel, a salientar a importância da satisfação do cliente no dia-a-dia. Garante que o projecto não estava dependente da obtenção da estrela, que toda a gente que conhece bem o Gusto considera que já vem tarde. Também tem 31 anos.
Julgo que com esta edição de 2018 o guia Michelin reparou quase todas as “injustiças” em Portugal. Assim que me lembre, talvez só ache mais “escandaloso” o Feitoria não ter já a segunda estrela. Mas acredito que se João Rodrigues persistir no caminho que está a seguir ela não irá demorar. E que há muitos outros candidatos a primeiras, segundas e terceiras estrelas para quem a obtenção da distinção é uma questão de tempo, desde que não aconteçam “acidentes de percurso”, como parece que foi o caso do restaurante do Esporão, de Pedro Pena Bastos, que encerrou e que muito provavelmente conseguiria estrela este ano.
São Gabriel, Alma, Fortaleza do Guincho, Lab, Antiqvvm são para mim os principais candidatos dos próximos dois ou três anos. O Loco também, mas às vezes tenho dúvidas se os inspectores não o julgarão demasiado ousado, quer na cozinha quer no conceito. Para a primeira estrela é mais difícil, mas também acho que será uma questão de tempo para o Euskalduna, Mesa de Lemos, Midori ou Vistas (Monte Rei). O Varanda do Ritz Four Seasons Lisboa estará dependente de querer autonomizar a cozinha de Pascal Meynard num espaço próprio, onde não tenha que conviver com o buffet do almoço. E estou certamente a esquecer-me de muitos outros, talvez acrescente se me lembrar de mais. Sobre a terceira, já disse o que tinha a dizer em post anterior, mas, com o passar do tempo, certamente que Ricardo Costa e Benoît Sinthon se juntarão aos três candidatos actuais.
Se há crítica que mantenho ao guia Michelin – e faço-a há muitos anos – é não reconhecer que a nossa cozinha dita tradicional também é merecedora de estrelas, como acontece noutros países. E aí há um sem número de candidatos, nem me atrevo a pôr aqui nomes. Em tempos, fazia-o (lembro-me do Conventual, Ramalhão, Porto de Santa Maria, por exemplo) e não percebo porque agora, quando os nossos restaurantes tradicionais melhoraram tanto, se esquecem deles.
Pode ser que reforcem a equipa de inspectores ibéricos e que eles tenham tempo para visitar mais lugares e não apenas aqueles “obrigatórios”. Com o aumento exponencial do turismo em cidades como Lisboa e Porto é cada vez mais incompreensível para quem compra o Michelin não encontrar lá certos restaurantes quando visita Portugal. Tanto mais que há muitos guias concorrentes que já o fazem. Não falo aqui de estrelas, mas sim dos restaurantes que a Michelin recomenda e que são muito mais procurados pela grande maioria dos turistas do que os pouco acessíveis estrelados.
Talvez por isso, alguém me contou que este ano eles enviaram um inspector que terá ficado mais de dois meses em Lisboa a ver como a realidade gastronómica tinha mudado na cidade. E o resultado está à vista. Kiko Martins, que diz não ter ambições de estrelas (espero que venha a ter um dia, é pecado desperdiçar talento...), bem se pode dar por satisfeito, embora clientes não lhe faltem, com a inclusão de O Talho, da Cevicheria e do Asiático. José Avillez viu o a Taberna e o Pátio, ambos no Bairro do Avillez, juntarem-se ao Minibar. Henrique Sá Pessoa tem agora o Tapisco entre os recomendados. E também o Bistrô 4, do Hotel Porto Bay, de João Espírito Santo, com a bênção de Benoît Sinthon. E até perceberam que se pode fazer boa cozinha japonesa em Portugal, com a inclusão do Go Juu. Entre entradas e saídas, em Lisboa passaram de 20 para 25 restaurantes recomendados, com estrelas e sem estrelas (infelizmente, no Porto, está tudo na mesma, talvez no próximo ano...). Oxalá seja um sinal de que os inspectores estão mais atentos a Portugal, porque decerto descobrirão que isto mudou para muito melhor. E por hoje, seja justo ou injusto, já chega de Michelin.
Nota: As duas primeiras fotografias são de divulgação, a última, mazinha como sempre, é tirada por mim no local