Quando há 2 anos, em conversa com João Rodrigues, lhe falava da importância de dar uma refrescada no conjunto de chefes a convidar para a sua etapa da Rota das Estrelas, ele contou-me que essa já era a ideia que tinha em mente.
Contudo, não é fácil conseguir a presença de alguns chefes estrangeiros alternativos mais badalados, dado que são constantemente assediados para eventos do género. Por outro lado, por vezes, as suas propostas viajam mal ou têm dificuldade em se enquadrarem em jantares a várias mãos. Além disso, o próprio conceito da Rota das Estrelas pressupõe um intercâmbio entre os chefes dos restaurantes que participam no evento.
Esta gestão de equilíbrios, entre o querer fazer algo de diferente e o repetir uma fórmula e um alinhamento de convidados que, para todos os efeitos, tem levado o evento a bom porto, constituía uma das incógnitas do programa planeado por João Rodrigues e pelas equipas do Hotel Altis Belém e restaurante Feitoria.
Estive presente apenas em um dos três jantares e acompanhei os outros dois a partir do que ia chegando às redes sociais. E, pelo que me foi dado a observar, pareceu-me que foi uma aposta ganha juntar chefes de mundo diferentes: uns mais clássicos, outros mais modernos, uns com propostas contemporâneas, outros mais ligados à tradição, uns com estrelas Michelin, outros sem estrelas, mas com nível e propostas interessantes.
No jantar de Sábado, dia 16, o menu foi da responsabilidade da equipa da foto inicial deste post: o anfitrião João Rodrigues, Kamilla Seidler do Gustu (La Paz, Bolívia), um restaurante com uma componente criativa e social muito interessante; Felipe Rameh do Trindade e Alma chef (Belo Horizonte, Brasil); Josean Alija, do Nerua (Bilbau, Espanha - 1*estrela Michelin), um dos chefes espanhóis mais interessantes da actualidade; e Paolo Casagrande, do Lasarte de Martin Berasategui (Barcelona, Espanha - 2**estrelas Michelin).
O primeiro a entrar em campo (após os snacks) foi Josean Alija. Primeiro com uns tomates cherry injectados com infusões de cebolinho, menta, lemongrass e alecrim, num caldo de alcaparras, um clássico do chef basco que me marcou quando visitei o Nerua e que na altura descrevi como sendo "um prato no qual se pode resumir parte da sua cozinha, em que Alija concede toda a nobreza a um produto considerado básico (a solo ou em conjunto com outros mais nobres); em que joga com o familiar e o inesperado (na conjugação de sabores); e em que os elementos são dispostos no prato com uma aparente simplicidade.
Depois, outro exemplo do que afirmo atrás do chef do restaurante do Guggenheim Bilbao: kokotxa em molho pil-pil, uma saborosíssima aproximação à tradição basca com um toque contemporâneo, no molho feito com a gelatina da papada do bacalhau (um aparte: esta é uma parte muito consumida no País Basco, que não temos o hábito de utilizar por cá. Segundo me informou o André Magalhães, da Taberna da Rua das Flores, o que se encontra cá são as línguas, cujo corte inclui normalmente a parte de cima da kokotxa, ou papada).
Gostei bastante desta interessante e exótica cañihua cremosa com legumes, da dinamarquesa Kamilla Seidler do restaurante Gustu de La Paz (Bolívia). A cañihua é um (falso) cereal andino altamente proteico ainda parente da quinoa e do amaranto. A consistência da confecção apresentada lembra o nosso xerém algarvio, ainda que com um sabor menos prenunciado. A ligação com legumes de diversas texturas e preparos (crus, cozinhados e marinados) funcionou a preceito.
"Presa ibérica, foie gras, salada marinha (com ostra) e gelado de mostardas", de Paolo Casagrande foi um prato que me dividiu. Se por um lado apreciei a conjugação terra-mar e a frescura do prato, por outro lado achei que o sabor delicado da presa se perdia no meio de outros sabores mais fortes, como a mostarda ou a ostra.
"Sargo e a beira mar": potente, mas ao mesmo tempo elegante esta criação de João Rodrigues que, segundo o chef, pretende mostrar de forma simbólica o sargo no seu meio ambiente, em que vai buscar às algas e aos pequenos crustáceos a sua fonte de alimentação. Que sabor a mar neste conjunto, sobretudo no arroz cremoso que se escondia debaixo das algas. Mais intensidade só mergulhando de costas sem apertar o nariz.
o chef do Feitoria João Rodrigues no passe perante o olhar atento da equipa
Paolo Casagrande em acção
rendilhado de carabineiros em orgia perfeita (não é o nome de um prato mas poderia ser).
"Pá de cordeiro com falso ovo" foi a proposta de conforto with a twist trazida pelo brasileiro Felipe Rameh. É impossível descrever este prato sem recorrer a superlativos. A qualidade e a confecção do cordeiro, bem como a mistura dos sabores na boca... que estalo! (O falso ovo era uma gema a baixa temperatura com puré de inhame).
Simples mas surpreendente foi a forma como terminou a refeição, com um gelado de leitelho de ovelha (buttermilk) com morangos, sopa de hibiscos e beterraba, com o terroso deste vegetal a combinar muito bem com a intensidade do gelado.
No final, a reunião de toda a equipa de cozinha e de sala para o merecido aplauso.
O Feitoria, bem como o próprio hotel, instalados à beira do Tejo, em Belém (Lisboa), de onde partiram os portugueses para descobrir novos mundos, têm como tema uma visão contemporânea dos Descobrimentos. Que outro local mais simbólico se poderia encontrar para reunir um grupo de talentosos chefes de várias latitudes?
Fotos: Paulo Barata e Miguel Pires (as 3 últimas)
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