A percepção que temos de um dado prato é a mesma independentemente da loiça em que é servido? Tem sido demonstrado que não*. Contudo, o efeito da cor e características do recipiente está ainda longe de ser entendido e previsto. Se ao efeito cor, textura e forma do recipiente se acrescentarem aspectos culturais com ele relacionados, penso que a situação seja ainda mais complexa. Mas parece-me ser relativamente pouco controverso se disser que a originalidade e a qualidade do recipiente irão valorizar o prato e induzir uma percepção mais positiva deste. Aliás, tal tem sido amplamente explorado em muitos restaurantes de qualidade.
Todas estas reflexões me surgiram na sequência de uma visita que tive oportunidade de fazer a algumas olarias em Molelos (Tondela) onde são produzidas loiças de barro negro desde tempos pré-históricos. Loiças estas que têm sido usadas pelas populações locais para cozinhar, conservar ou armazenar bebidas ou outros alimentos, e ainda como loiça de mesa ou decorativa.
Depois das peças serem moldadas na roda do oleiro, são secas lentamente ao ar e cozidas. Tradicionalmente a cozedura era feita em Soenga, ou seja, numa cova pouco profunda, actualmente é em fornos a lenha, mas sempre reproduzindo as fases do processo tradicional.
O facto das peças serem negras, resulta da forma como são cozidas e do tipo de barro usado. Todos os oleiros que visitámos nos referiram a importância da proveniência do barro. Por pesquisas posteriores que fiz, acredito que tenha que ser um barro rico em ferro. Este produzirá um barro vermelho ou castanho com uma cozedura numa atmosfera rica em oxigénio. Contudo, nos barros de Molelos, na fase final da cozedura é feita uma obstrução completa do forno para evitar a entrada de ar, ficando a atmosfera muito deficiente em oxigénio. Neste ambiente redutor, ocorre uma conversão de óxido férrico - Fe2O3– que é vermelho, em óxido ferroso - FeO – que é preto.
Antes do forno ser selado, é ainda introduzida uma madeira resinosa no forno. A combustão desta, no ambiente deficiente em oxigénio, vai produzir finíssimas partículas de carbono. Sendo o barro poroso, este vai ficar impregnando com estas partículas, contribuindo elas também para a cor.
O aspecto brilhante, um brilho quase metálico, resulta do facto das peças, antes de serem introduzidas no forno, serem brunidas, ou seja polidas com um seixo. Tal contribui também para uma certa impermeabilização destas.
A visita terminou com um jantar no restaurante 3 Pipos onde forma servidos alguns pratos regionais em loiças tradicional de barro negro, e em pratos criadas propositadamente para a ocasião pelos oleiros que visitámos – Olaria Moderna, Artantiga e Barraca dos Oleiros .
Certamente que a experiência teria sido diferente se a comida tivesse sido servida numa outra loiça sem esta dimensão cultural. A loiça de barro negro resulta de um conhecimento empírico milenar que, não sendo exclusivo desta região, tem que ser preservado. Da conversa com os oleiros ficou a ideia de que não há seguidores jovens e que o número de olarias tem vido a diminuir. É importante dar continuidade a este trabalho. Haverá muitas formas de o fazer, incentivando a formação de jovens para a produção de barro negro, e também dando-o a conhecer e promovendo o seu uso, quer na cozinha regional da zona, quer noutros contextos, já que a escolha é vasta indo dos objectos tradicionais aos mais contemporâneos.
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http://www.flavourjournal.com/content/pd
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