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Ainda as carnes maturadas: e em Portugal?

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Kiko Martins com uma peça de carne de vaca maturada que serve e vende no Talho
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Começo pelo final do primeiro post sobre este tema, oportunamente lançado aqui, pela Alexandra Forbes, e que suscitou uma série de reacções muito interessantes e entusiastas (acho que a polémica vai ficar reservada para o prometido post da Alexandra sobre "envelhecimento" de peixes). Entre os vários comentários feitos a esse texto resolvi destacar, neste novo post, parte da resposta de Vítor Claro (chef do restaurante Claro!, a quem o Mesa Marcada atribuiu este ano o Prémio Destaque 2013) para, conjuntamente com um email que recebi de um profissional da indústria de carnes, aproveitar para ficarmos a saber um pouco mais sobre o tema em Portugal. Dizia o Vítor:

 

não há nada que proíba a carne maturada por cá. é só um custo e uma exigência duplicada, e nem sempre se está disponível para isso.

a carne para maturar não pode ser qualquer uma. tem de ser carcaças com idade (maturadas em vida :-) ) e com uma alimentação certa para que tenham gordura. a maturação implica não só a acção microbiana positivia, como também, e fundamentalmente, a perda de sucos por evaporação e osmose. a carne perde peso e água, logo, concentra o sabor.
e quando, depois de cozinha, se incisa a faca, não escorre aquela aguadilha desagradável. 
é uma arte. e um custo. tem de ser feito em condições frigoríficas muito específicas. 

no nosso talho vulgar encontra-se carne de vitelão, principalmente. é a que mais se procura. a nossa carne de excelência é a clássica "vitela assada", mesmo que nem seja sempre vitela (já a chegar ao novilho).
e essa carne é sem dúvida melhor mais fresca e períodos de maturação mais curtos. 
implicitamente à maturação vem a lógica de se saber ser fundamental a gordura. e quem é que quer gordura?
quantos portugueses, por norma, preferem a carne "sem nervos e gordura"?
quase todos.
é uma questão cultural, acho eu. 

 

O meu pai trabalhou a vida toda ligado à industria de carnes e, como filho de peixe sabe nadar, o meu irmão seguiu-lhe a pegadas. (Já eu dedico-me mais ao peixe, mas isso agora não interessa). Quando a Alexandra escreveu sobre carnes maturadas e convidou, no final, os leitores a falarem sobre o tema em Portugal instiguei o meu irmão a comentar. Porém, em vez de o fazer directamente, ele preferiu enviar-me um email (diz que não lida muito bem com as críticas - já estão a ver os almoços de Natal lá em casa, não estão? :). Então aqui vai: 
Começo por lembrar que sou um consumidor de carne maturada, já lá vão muitos anos. Por incrível que possa parecer o meu primeiro contacto com novilho maturado foi em casa dos pais vai o ano 1972/73. Lembro-me do pai chegar a casa com uns bifes (hoje sei que eram da vazia) e dizer: “Oh Luz, prepara estes bifes! Sempre quero ver se isto é bom! Agora tenho lá uns malucos que querem que após o abate  eu guarde as ‘rezes’ 15 dias no frio, só depois as vem buscar, nem sei como vou fazer para convencer o representante Inspecção Sanitária. Esses malucos eram o Cozinheiro Chef e o Responsável de Compras do Hotel Sheraton que tinha acabado de ser inaugurado.
 
Só estou a responder hoje porque pedi um parecer à APIC (Associação Portuguesa de Industriais de Carne) sobre a legislação, o qual só chegou as 23H24 e que transcrevo na integra:
 
De: APIC - Associação Portuguesa dos Industriais de Carnes <sec@apicarnes.pt>
Assunto: Carne Maturada | DGAV e ASAE
Em relação a este assunto o Dr. Miguel Lamela da DGAV diz que não há legislação nacional nem comunitária sobre este assunto, e que nestes casos, basta o operador demonstrar que segundo o seu sistema HACCP os binómios tempo/temperatura que está a utilizar são os correctos para que o produto não constitua perigo para a saúde pública. 
 A Eng. Graça Mariano da ASAE confirmou que não há legislação e que em termos de rotulagem a denominação de venda deve referir o que é o produto bem como o estado físico em que se encontra, que no fundo é o que diz a lei, ou seja, “Carne Maturada Congelada” ou “Carne Maturada Refrigerada”.
Parecer da DGAV (Direcção Geral de Alimentação e Veterinária) e ASAE (Autoridade de Segurança Alimentar e Económica).
DEPOIS DISTO, VAMOS AO TEMA:
 
O consumo de carne maturada não é hábito alimentar comum em Portugal quando comparado com o Brasil ou com o Reino Unido. Ainda assim, este tipo de carne, foi apontado numa crónica no Jornal de Negócios, em Outubro de 2013, como uma próxima tendência alimentar.
 
Especialistas portugueses na arte de cozinhar bons bifes referem que (transcrevo) “não se conseguem fazer bons bifes sem boas carnes maturadas”. Também o Clube de Produtores Sonae, uma das maiores cadeias de distribuição em Portugal, afirma que (transcrevo) “Os novilhos do Clube de Produtores são maturados no mínimo durante 9 dias, até que se processe o corte e embalamento, garantindo assim uma tenrura e sabor incomparáveis.”
 
A maturação é um processo enzimático natural de amaciamento da carne em condições de temperatura controlada, que inicia após o rigor mortis. O tempo de maturação pode variar de 7 a 22 dias dependendo do corte e do resultado pretendido. Este processo pratica-se com o objectivo de melhorar o sabor, a suculência e a maciez da carne.
O processo de maturação da carne, deve ser um processo controlado e de preferência com as peças embaladas em vácuo, o que permite o retardar do crescimento de bactérias aeróbias putrefactivas e favorece o desenvolvimento de bactérias lácticas, capazes de produzir substâncias antimicrobianas.
 
Os pareceres sobre esta prática em Portugal são discordantes:
Se por um lado há quem diga que: (transcrevo)“A maturação das carnes é uma operação que o espírito asséptico e terceiro-mundista do legislador português, proíbe”; outros afirmam que: (transcrevo) “Ao contrário do que se diz e corre, em Portugal pode tanto maturar-se carne como importar carnes maturadas, desde que sujeita aos evidentes e fundamentais controlos sanitários. Está contemplado na nossa legislação e sabemos que se pratica.”
 
Antes de tudo mais, era importante que a legislação portuguesa publicasse uma definição de carne maturada, assim como existe para outros tipos de carne. Pelos pareceres acima transcritos dá a entender que o primeiro acha que a carne maturada é boa a nível organoléptico mas que para assim ficar é necessário estar imprópria para consumo no que respeita às condições microbiológicas. A segunda opinião é oposta e refere que a carne maturada é comercializada em Portugal, dentro dos requisitos legais. Como não há de facto requisitos legais para este tipo de carne em específico, talvez possa haver aqui uma confusão entre Carne Maturada e Carne embalada em vácuo.
Ao que parece, comercializa-se de facto em Portugal carne maturada, mas a legislação abrangente é pouco específica e aplica-se basicamente a legislação geral da comercialização de carne.
Se considerarmos a carne embalada em vácuo, que como referido anteriormente, este processo retarda o crescimento de bactérias aeróbias putrefactivas e favorece o desenvolvimento de bactérias lácticas capazes de produzir substâncias antimicrobianas, então, temos uma carne dentro dos parâmetros legais apta para comercializar mas que pode efectivamente ficar até alguns dias sem ser consumida, tempo esse em que a carne adquire sabor e textura inconfundíveis e que pode ser associado à maturação.
 
É de reparar que cada vez mais, nas superfícies comerciais, as carnes de valor acrescentado estão embaladas em vácuo, talvez apenas porque o seu tempo de vida de prateleira seja maior, ou então porque se esta se conserva por mais tempo própria para venda, pode maturar mais ou menos tempo antes de ser comercializada. Sob este ponto de vista, carnes maturadas em Portugal, é isto!
 
Se necessitares de mais alguma coisa dispõe.
 
Um abraço
Mano Velho 
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No primeiro testemunho, Vítor Claro diz que não há nada que proíba a carne maturada em Portugal. Certo. Porém, segundo o que se percebe da lei, isso é verdade, desde que as condições microbiológicas estejam de acordo com os padrões. Ora, o grande desafio está em conseguir conjugar este método de maturação a seco, pendurado, e em atmosfera controlada, com os rigorosos padrões higienistas, que a ASAE gosta de fazer cumprir escrupulosamente (em demasia).
Por outro lado receio que esta moda das carnes maturadas, que de facto está a chegar (ainda ontem no "novo" Mercado de Campo de Ourique, havia fila para o prego de uma das bancas que vendia carne maturada) vá gerar a mesma ilusão que acontece nos vinagres balsâmicos, cujo os verdadeiros e caríssimos, são uma percentagem ínfima do que se vende sob o rótulo de "aceto balsâmico". A carne maturada em vácuo até pode melhorar o sabor e a maciez da peça, mas, como em tudo, há umas melhores do que outras - além de que não se deve confundir com o método de "dry aged" (muito menos com as longas maturações que a Alexandra abordou nos seus posts).
Resumindo, é importante lembrar muito do que foi dito nestes posts: a carne maturada não é para qualquer palato; não é qualquer carne que ganha em ser maturada; a alimentação do animal, bem como a parte do mesmo escolhido para maturar, têm uma grande influência no sabor; não se deve maturar carne em casa, a menos que se tenha as condições de atmosfera controlada para o fazer; não confundir carne maturada a vácuo com "dry aged", ou maturada pendurada a seco (esta última é muito mais saborosa).  Se mais alguém quiser acrescentar algo a este resumo, faça o favor.
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