Hoje volto a escrever sobre um livro. Um livro que saiu há pouco mais de um mês - “Cozinha com Ciência e Arte” de Joana Moura, editado pela Bertrand.
Contudo, antes de começar, quero fazer uma “declaração”. Este é um livro sobre o qual a minha escrita não é de todo imparcial, distante, objectiva… É um livro e uma autora a que estou profundamente ligada. Assumo isso, e também que o que vou escrever tem uma carga emocional grande.
Comecemos pela autora, que eu conheço desde sempre. Fui aluna dos pais da Joana, sou amiga deles e conheço-a desde criança. O interesse da Joana pela cozinha também começou cedo e muitas vezes, ainda adolescente, me acompanhou nalgumas maratonas culinárias. Durante uns anos perdemos o contacto, os anos em que ela estudou arquitectura paisagista e trabalhou num atelier. Um dia encontrámo-nos, numa manhã de fim-de-semana na Deli Delux. Fiquei a saber que tinha decidido mudar de vida e dedicar-se à cozinha, que tinha estado em Paris a estudar pastelaria.
Íamos organizar o primeiro curso sobre novas técnicas de cozinha na semana a seguir, disse-lhe que aparecesse. O segundo curso já foi dado com a colaboração da Joana. Depois… muita água correu debaixo da ponte. Formámos a Cooking.Lab (de que eu já não sou sócia, porque o tempo não dá para tudo e na vida temos que fazer opções), concorremos aos concursos Cuisine, Sciences & Art em Paris, falámos muito de cozinha, trocámos conhecimentos, fomos a muitos restaurantes, fizemos muitas experiências, mas sobretudo a Joana dedicou-se mais do que ninguém a compreender, testar e desenvolver aplicações envolvendo as novas técnicas de cozinha. Fez um bom trabalho, até porque é muito criativa e tem um grande sentido estético.
Quando a Joana soube que íamos começar com o Mestrado em Ciências Gastronómicas inscreveu-se. Trabalhou muito, e quando chegou a altura da tese decidiu que queria fazer qualquer coisa sobre a utilização de hidrocolóides (os espessantes e gelificantes de que tanto se fala) na cozinha. Constatámos que, apesar da utilização na cozinha destas substâncias há vários anos, não havia nenhum livro a nível mundial sobre isso. São referidos em algumas receitas de outros livros. Mas não havia nada dedicado exclusivamente a estas técnicas, tratando de vários hidrocolóides e explicando as suas características, potencialidades e o que os distingue. E muito menos que envolvesse mais do que receitas, que integrasse estas substâncias no contexto em que tinham sido introduzidas na alta cozinha e transmitisse conhecimento sobre elas. Decidiu-se que o trabalho de mestrado seria uma continuidade do trabalho feito pela Joana nos anos que o precederam, e envolveria a escrita de um livro. Um trabalho que eu tive imenso prazer em orientar.
A Joana é uma Mulher corajosa, com coragem para mudar de vida, para lutar por aquilo em que acredita e pelas suas paixões. Também é perfeccionista e muito trabalhadora… falemos então do livro.
O capítulo 1 trata da cozinha contemporânea, dos movimentos que revolucionaram a cozinha nas últimas décadas e das suas características. Fala-se ainda da relação entre cozinha e ciência e entre cozinha e arte. Este capítulo permite de certa forma definir o contexto em que foram introduzidos na alta cozinha os gelificantes e espessantes usados no livro.
No capítulo 2 trata-se da textura dos alimentos – um aspecto fundamental em cozinha.
Fala-se da sua importância, das principais estruturas que conferem textura (espumas, emulsões e géis) e da utilização de agentes texturantes ao longo dos tempos. Porque sempre se usaram, não só alguns bem comuns, como até muitos destes introduzidos agora na alta cozinha são usados nas cozinhas tradicionais em muitas zonas do globo. Tenta-se ainda esclarecer algumas dúvidas correntes sobre este tipo de ingredientes.
Com base na sua experiência prévia, a Joana escolheu um conjunto de agentes texturantes: agar, alginato, carragenina kappa, metilcelulose, maltodextrina, gelano, goma de alfarroba, konjac e xantano, de entre o conjunto de substâncias introduzidas na cozinha nos últimos anos. Tinha como objectivos transmitir a sua experiência com a utilização destas substâncias. Ao contrário do que muita gente julga não é tarefa fácil usá-las, visto que de repente surgiram variadíssimas, antes desconhecidas, e todas com propriedades diferentes. Umas não se dão bem com ácido, a outras a água ter mais ou menos cálcio faz com que se comportem de forma diferente, umas gelificam quando a temperatura sobe e outras quando baixa, e outras precisam de cálcio… O objectivo foi transmitir algum conhecimento sobre tudo isto, numa linguagem rigorosa, mas não excessivamente técnica. Para cada uma destas substâncias a são explicadas as características e proveniência e apresentada uma tabela com uma compilação da informação com ela relacionada.
Tendo transmitido este conhecimento o passo seguinte era sugerir aplicações interessantes, divertidas e boas, que ilustrassem e utilização destas substâncias em diferentes contextos e com diferentes objectivos. Que permitissem a quem estivesse interessado familiarizar-se com elas. Para cada uma delas a Joana desenvolveu receitas originais – 36 receitas no total. Também aqui houve uma grande preocupação e cuidado em definir o estilo de escrita e particularmente em tornar as receitas precisas, claras, concisas, completas e consistentes para serem fáceis de seguir. Os procedimentos foram ainda todos ilustrados pela Joana. E as fotos da Rita Silva são lindíssimas.
Tudo isto terminou com um glossário onde se definem termos menos comuns e se explicam ingredientes pouco usuais.
Mas o trabalho não ficou por aqui, uma das características destas substâncias é que são usadas em quantidades muito pequenas, tão pequenas que não se podem medir com uma balança de cozinha normal. Pior que isso, pequenas alterações nas quantidades dão resultados muito diferentes. Assim, a Joana procurou encontrar uma forma de tornar as receitas tão reprodutíveis quanto possível numa cozinha normal. Arranjou colheres medida, incluídas num kit de instrumentos que acompanha o livro, e nas receitas os gelificantes e espessantes são medidos com recurso a elas.
Acho que a Joana se pode orgulhar deste trabalho e todos nós também, porque é um livro único a nível mundial e que pode ser extremamente útil para quem quiser explorar estes ingredientes.
Já agora conto um pouco mais. O trabalho não ficou por aqui. As características de cada espessante e gelificante variam consoante o fornecedor e os resultados obtidos podem ser bem diferentes. A Joana apercebeu-se disso empiricamente e depois, no trabalho para a tese, demonstrou-o com análises que fez para o agar. Chamando a atenção para a importância de ser fornecida informação técnica sobre algumas das características destas substâncias.
Assim, para que as receitas fossem reprodutíveis, a Joana decidiu contactar um fornecedor – a empresa Sosa, e usar os produtos deles no desenvolvimento das receitas para o livro. Inclusivamente colaborou com eles na criação de uma linha de produtos para cozinhas domésticas, comercializados em pequenas quantidades (Home Chef), e que incluí todos os gelificantes e espessantes usados no livro. Estes são comercializados em Portugal pela inspiringingredients.com, site lançado quase em simultâneo com o livro.
Uma notícia acabadinha de chegar…
Depois de ter terminado a escrita deste post recebi uma notícia que me deixou muito contente. O livro “Cozinha com Ciência e Arte” ficou em 1º lugar em Portugal na categoria Book for Food Professionals nos Gourmand World Cookbooks Awards 2011. Em Março vai competir com livros da mesma categoria noutros países para The Best in the World. Vamos torcer!