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Trás-os-Montes, o butelo, as casulas e os cuscos

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Não sou muito dado a regionalismos politicos mas simpatizo com o apreço com que muitos devotam às suas regiões de origem familiar. De todas destaco Trás-os-Montes, pois nunca vi ninguém falar com tanto orgulho da sua origem, cultura e, dentro deste campo, da sua gastronomia, como o transmontano (ok, o alentejano anda lá perto). Só aqui em Lisboa o lobby transmontano (como carinhosamente lhes gosto de chamar) conta com figuras como o Virgilio Nogueiro Gomes, a Justa Nobre, o José Cordeiro e até o nosso alfacinha Duarte Calvão, descendente da região. Falem em aldrabices, tipo 'alheira de bacalhau' e vão ver o Virgilio Gomes a puxar da pistola; digam ao Chef Cordeiro que os cuscos nem têm assim tanta piada e vão ver o que é levar com uma boina na testa; ou sugiram cozer butelo numa panela de pressão e vejam se não são corridos à butelada. 

 Vem isto a propósito do jantar do Festival do Butelo e das Casulas oferecido pela Câmara Municipal de Bragança que decorreu ontem no Spazio Buondi/Nobre (não daria já para acabarem com a referência à marca de cafés no nome??), em Lisboa e que reuniu boa gente à volta da mesa para degustar este prato típico transmontano.

 O Butelo com casulas é uma especialidade que se costuma comer nesta altura e que tem direito até a seu festival, de 22 a 24 de Fevereiro, em Bragança. O butelo é um enchido que envolve numa bexiga ou num bucho de porco, um recheio de ossos da suã (coluna vertebral do porco) com a carne agarrada  - e eventualmente outras partes do porco -,  ficando a fumar durante duas a três semanas. Tradicionalmente o processo era/é feito - como com outros enchidos - nas lareiras das casas transmontanas, durante o inverno, para depois ser comido no Sábado de Carnaval, na companhia de casulas, que não é mais do que o feijão seco com a casca que, uma vez demolhado durante umas boas horas, é cozido com o enchido, normalmente na água da segunda cozedura deste. 

Não deve ter andado muito longe o processo seguido pela chef Justa Nobre no prato rústico que apresentou, sem adornos no empratamento nem toques contemporâneos, embora enriquecido com pernil, entrecosto e salpicão. O prato não é bonito, de facto, mas é muito saboroso e, por estranho que possa parecer, equilibrado. Carne macia (sem a secura que por vezes apresenta) com traços do fumado (mas não em demasia) e sal no ponto. As cascas, a batata, os outros primos do porco e um compriiiiiiiido fio de azeite compuseram e bem o ramalhete. Confesso que tive algum receio de comer este prato ao jantar porque imaginei-me a completar a digestão apenas dois dia depois. Mas não, o conjunto não é assim tão pesado. Como me explicou a Fátima Moura (que não sei se é transmontana, mas que está envolvida no projecto), as fibras das cascas facilitam a digestão das gorduras. Deve ter sido isso, até porque antes do butelo comi umas boas fatias de presunto de porco bísaro (talvez o melhor que já saboreei até hoje desta raça e, sem dúvidas, um dos melhores de origem portuguesa), e uns pastéis de massa tenra do entrudo. Já para não falar da sobremesa que a Justa escolheu: cuscos doces com frutos vermelhos, feitos como um arroz doce. Isto tudo regado com um rosé (bem escuro, para o género) e um tinto (ambos muito agradáveis) que a Quinta dos Holminhos faz para a casa. Houve ainda uns licores de ervas, mas passei essa parte.

 

cuscos doces com frutos vermelhos de Justa Nobre 

E será que é tudo maravilhoso nestes dois produtos que o 'lobby transmontano' nos tem apresentado nos últimos tempos - por exemplo, através da empresa Grão a Grão, e da sua ligação com o chef Cordeiro ou, como neste caso, através da Origem Transmontana, que tem feito um trabalho assinalável na comercialização e divulgação dos produtos da região? Será que não se podia aligeirar a rusticidade retirando alguns dos ossos, sobretudo os mais pequenos e traiçoeiros, antes de servir no prato? Quanto aos cuscos, confesso que este granulado de trigo artesanal (refiro-me a eles assim, à falta de um termo melhor), que tanto trabalho dá a fazer, não me convence muito. No Feitoria, o Chef Cordeiro cozinha-os com caldo de peixe e crustáceos e acompanha um lombo de peixe; no 100 Maneiras, Ljubomir Stanisic confecciona-os como um risoto e, neste caso, a Justa fê-lo como um arroz doce. Provavelmente o problema deve ser meu, que tenho demasiadas referências de arroz na cabeça e não estou a par da forma tradicional de os confeccionar, mas adiante. Nesta sobremesa da Justa Nobre, claro que gostei do sabor e da combinação com frutos vermelhos, que cortam um pouco os ovos e o açúcar, mas a textura de alguns cuscos maiores não é fantástica (com o devido respeito, mas... se essa sensação não é boa noutro tipo de massas porque haveria de ser nestas? só por serem artesanais?). 

Não há como cada um julgar por si e nada melhor do que fazê-lo 'ao vivo', nos dias 22, 23 e 24 de Fevereiro, no Festival do Butelo e das Casulas em Bragança.


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