Em primeiro plano, da esq. para a direita: a simpática empregada que atendeu a nossa mesa, José Cordeiro, João Rodrigues, Hans Neuner, Ricardo Costa e Vincent Farges
Afazeres vários impediram-me de já ter dado conta do óptimo jantar que marcou a entrada do Feitoria, restaurante do hotel Altis Belém, em Lisboa, na iniciativa Rota das Estrelas (de que aqui dei notícia) mercê da estrela Michelin que no ano passado conquistaram. Se nesse post demonstrei receios sobre o que às vezes acontece nestes jantares a várias mãos, felizmente eles não se confirmaram e, pelo que percebi, não só resultou gastronomicamente muito bem, como foi uma ocasião alegre de convívio entre os chefes (e membros das suas equipas) e destes com os clientes que enchiam a sala por completo.
A minha primeira satisfação foi justamente ver casa cheia. É verdade que, como sempre acontece nestas ocasiões, havia muitos convidados (eu e outros bloggers e jornalistas incluídos), mas, segundo me disseram, seriam menos de metade do total. Ao lado da mesa em que fiquei, lá estava um grupo de uns dez suecos, que passaram noite com aquela alegria e descontracção que a boa comida provoca. E havia outras, principalmente de casais, portugueses e estrangeiros, que me pareceram todos no mesmo “clima” dos suecos, embora menos efusivos. Sabendo que o jantar custava 150 euros e que a situação que vivemos no país não está para extravagâncias, é de assinalar. Pareceu-me que a grande maioria terá gostado bastante, a julgar pela boa disposição reinante do terraço ao ar livre, no final, num momento de descontracção e conversa com os chefes, a aproveitar as amenidades das noites de Verão lisboetas.
Sobre o jantar em si, depois dos agradáveis aperitivos, que só não nos prepararam melhor para a mesa porque a selecção portuguesa enfrentava o Luxemburgo e a coisa não foi fácil, o chefe anfitrião, José Cordeiro, deu início com um miolo de vieira com puré de ervilhas e pó de chouriço. Foi um começo simples, bom e directo, bem ao estilo Cordeiro, que tem em João Rodrigues um valioso braço direito. Aliás, esta combinação de peixes e mariscos com ervilhas e produtos de fumeiro (Bertílio Gomes, por exemplo, praticava-sa magistralmente, quando tínhamos a sorte de poder desfrutar da sua cozinha, o que será feito dele?) tem se revelado absolutamente vencedora e neste jantar estava muito bem executada.
Barriga de atum dos Açores, fígado de ganso fumado, nori e alho preto (Hans Neuner)
Seguiu-se o prato de Hans Neuner, com barriga de atum dos Açores, fígado de ganso fumado, nori e alho preto. Quer pela qualidade quer pelo corte, terá sido um dos melhores toro que já comi (compara-o aos que o saudoso Yoshitake preparava no Aya) e o alho preto e o nori combinavam esplendidamente, assim como uns inesperados cubos de chuchu que por ali andavam. O mesmo já não posso dizer do fígado de ganso que acrescentava desnecessariamente gordura à do atum, não a deixando resplandecer como devia. Felizmente, só cobria metade do deliciosa fatia da barriga do peixe, pelo que foi possível comparar. Pelo que conheço de Neuner e pelo que me dizem pessoas em cuja opinião eu confio, este chefe, que me parece merecer as duas estrelas Michelin que ostenta, é dos melhores profissionais a trabalhar em Portugal, tem ambição em evoluir e é muito criativo. No entanto, a sua cozinha, que creio ainda não ter encontrando um rumo, precisa de melhor definição. Julgo que o tempo e o amadurecimento que ele traz farão bem a este jovem e talentoso chefe, que em boa hora veio viver entre nós.
Falso ravioli de camarão em caldo dashi (José Cordeiro)
O chefe Cordeiro voltou então com um falso ravioli de camarão em caldo dashi, em que marisco estava recheado com cogumelos shitake. Mais uma vez sabores nítidos e fortes, bons pontos de cozedura, ligações com sentido, só tenho a apontar o caldo, que talvez pudesse ser um pouco mais leve. Eis então que chega Ricardo Costa, trazendo uma dourada de mar, sautée com crosta de tomate, lula recheada, polenta cremosa. E, apesar de não vir enunciado, um “torresmo” feito com a pele frita do peixe, que causou sensação. Apesar dos muitos elementos do prato, a verdade é que a sua conjugação resultou na perfeição, ajudada por temperos exactos. O único defeito estava no ponto da dourada, um pouco passada de mais para meu gosto, mas pode ter sido uma excepção, porque já se sabe que nestes jantares em que há muitos pratos a sair ao mesmo tempo, nem sempre se consegue controlar bem este aspecto.
Dourada de mar sautée com crosta de tomate, lula recheada, polenta cremosa (Ricardo Costa)
Depois de uma visita à cozinha, aqui contada pela Alexandra Prado Coelho, e de um gin tónico com limão e sem história de “limpa palato”, foi a vez de Vincent Farges servir peito de pata Barberie escalfada e assada, cenouras da Quinta do Poial glaceadas com galanga, puré de cenoura-toranja e molho do assado. Foi outro dos pontos altos deste jantar, que aliás não teve nenhum prato abaixo do “muito bom”, em que a magnífica cozedura da ave brilhou neste firmamento de estrelas.
Lasanha doce, parfait, sorvete e merengue de frutos vermelhos (Ricardo Costa)
O chefe Cordeiro ainda nos deu uns cornetos recheados de chocolate com peta zetas, de efeito sempre garantido, mas o grande final estava reservado para Ricardo Costa, com uma sobremesa excepcional em que frutos vermelhos surgiam numa grande variedade de confecções e texturas, como lasanha, parfait, sorvete e merengue. Apesar do elemento comum dos frutos vermelhos, estava tão variada que até julguei que poderia levar algum chocolate (talvez porque ainda tivesse o sabor da pré-sobremesa na boca), mas não. Só por esta sobremesa, o jantar teria valido a pena, e é bom saber que temos um jovem chefe português como Ricardo Costa com capacidade de fazer pratos como este.
No dia seguinte também houve jantar, como Virgílio Gomes relata aqui, com pratos diferentes. De ano para ano, a Rota das Estrelas mostra ao que veio e, num país em que a cozinha verdadeiramente criativa tem poucas oportunidades de mostrar o que vale, tornou-se imprescindível. Oxalá, em próximos anos, muitos outros chefes se venham juntar a estes, a quem agradeço o magnífico jantar que me proporcionaram.
Nota 1: Além da Alexandra Prado Coelho, que está a escrever cada vez melhor sobre estes temas, fez-me companhia à mesa a Isabel Rafael, do blog Cinco Quartos de Laranja, que não conhecia. Além de uma simpatia, é outra pena de grande qualidade, com se pode verificar pela descrição que faz deste jantar.
Nota 2: Quem também está cada vez melhor é o Paulo Barata, a quem cabe a autoria das fotografias que aqui reproduzo e que ele gentilmente cedeu. Já viram a beleza que estão?