Há uns meses, durante uma viagem de avião, entretive-me a fazer a lista de alguns restaurantes a que gostava muito de ir, todos fora de Portugal e todos de cozinheiros com uma cozinha muito característica e personalizada. Uns dias depois recebi um convite para participar numa actividade em Genève. Um dos restaurantes da lista era lá perto... fui ver o site, vi quantos dias mais teria que ficar, os hotéis... Ficava caro... muito caro... mas achei que eu merecia aquela prenda... e marquei tudo.
Umas semanas depois fiquei a saber que em 2012 ia deixar de ter subsídio de Natal e de férias, o que somado ao corte do ano anterior dá uma perda muito, muito significativa do meu poder de compra... Pus a hipótese de desmarcar o jantar. Andei dias e dias numa longa conversa comigo... e, apesar de tudo, decidi ir.
O dito jantar seria no restaurante Le Château de Denis Martin. Mais... quando fui consultar o site descobri que durante a semana (terça, quarta e quinta) têm um "pacote" irresistível... Este, além do menu de degustação, inclui o emparelhamento dos pratos com vinho, 1 hora (que de facto foram 2) na cozinha a conversar com o Denis Martin e o livro dele autografado.
E num belo dia de Novembro, depois de uma caminhada à beira deste lago, na pacata e simpática vila de Vevey,
um lago que tem a particularidade de ter um garfo espetado... no local em frente do Alimentarium (museu da alimentação, que visitei durante o dia)
às 7 horas em ponto, toquei à campainha deste restaurante:
Poderia ser, de facto, um espaço de um laboratório... uma hotte com uma montagem para uma destilação a pressão reduzida, uma bomba de vácuo, uma centrífuga, dois potes de azoto líquido...
E a conversa começou com o Denis Martin a explicar a importância que dava ao sabor e aos aromas... Puseram então a destilar uma mistura de sumo de limão com a casca ralada, para no fim avaliarmos o resultado.
Falou-nos das inúmeras possibilidades que usar esta técnica lhe abria, de alguns exemplos que teríamos oportunidade de provar depois, e deu-nos para cheirar uma variedade de destilados que tinham obtido ali:
mangericão, menta, cogumelos, laranja... aromas extremamente potentes, frescos, vivos... conversámos sobre as vantagens da sua utilização, Denis Martin falou das novas perspectivas que abriam na cozinha, de projectos que tem, do que tem aprendido nos contactos com a empresa de aromas Firmenich (dias antes tinha lá passado à porta em Genève e sabia ser uma empresa com que Heston Blumenthal também trabalha).
Depois disse-nos que outra coisa a que dava muita importância também era ao ambiente em que as refeições decorriam. Que se a um grupo de pessoas fosse dado um saucisson com pão e um copo de vinho, o ambiente e a atitude era bem diferente do que se lhes fosse dado um sauternes com foie-gras. Que normalmente as pessoas vão para um restaurante com 2 estrelas Michelin, com uma atitude "mais séria" e que ele gostava de um ambiente descontraído. Que isso era importante para ele. Que um dia tinha reparado que nos restaurantes se põem muitas vezes na mesa umas flores e as pessoas nem se conseguem ver bem... Ele é muito expressivo a falar, de modo que as histórias que foi contando e a forma como o fazia, deram origem a momentos muito divertidos. Acabou por nos perguntar se tinhamos reparado o que estava em cima das mesas:
Tinhamos todos... não havia flores... havia uma vaquinha, daquelas que há em todas as lojas para turistas e que quando se viram fazem mooo-mooo....
Ele demonstrou:
Contou que a mulher, quando soube que ele tinha mandado fazer as vaquinhas para pôr nas mesas com o logo do restaurante, disse que desta é que ele tinha ultrapassado os limites...
Claro que durante o jantar frequentemente se ouviu mooo-mooo, vindo de uma ou outra mesa... às vezes ouvir-se de uma fazia com que nos ríssemos todos e acabasse por se ouvir de outra...
Estava criado o ambiente... a curiosidade para provar os pratos, a atitude descontraída e divertida... a certeza de que nos pratos iríamos encontrar muito da personalidade irreverente do Denis Martin.
E a conversa continuou... disse-nos que andava muito de barco com os amigos, e explicou-nos como cozinhava a massa, cozinhou uns camarões no micro-ondas com um molho de caril e várias ervas, fez uma sobremesa com um creme que tinha no sifão e uma frigideira com azoto líquido, vieram as colheres e todos ali provámos a sobremesa do mesmo prato... bateu umas claras que magicamente ficaram em castelo com 3 batidelas, riu-se e explicou a brincadeira. Meteu um cubo de gelo no micro-ondas e obteve um prato quente com um cubo gelado e brincou connosco, explicando como tinha feito e o funcionamento do micro-ondas e como entendê-lo permitia fazer algumas "brincadeiras".
Falou da importância do conhecimento e das técnicas, mas disse que as técnicas não fazem uma cozinha. Que é fundamental a emoção, as histórias que se contam, o que se transmite... Que é isso que faz uma cozinha!
As duas horas que ali estivemos passaram num instante. Deu para entender que íamos comer uma cozinha muito personalizada, inovadora, com o recurso a novas técnicas, que não pode ser avaliada com os mesmos parâmetros de uma refeição tradicional, porque tudo é diferente.
Tinha sido essa a razão que me tinha levado ali! Conheço bem, de um ponto de vista técnico, as novas técnicas de cozinha. Às vezes tenho pena, porque certamente perco uma componente grande da magia que a surpresa traz... Só por si não me fascinam, mas fascina-me descobrir como são usadas de forma inovadora, com qualidade, com resultados esses sim quase mágicos para mim. É raro isto acontecer, porque exige muito trabalho, muita criatividade... Costumo dizer que fazer "bolinhas" qualquer um faz, fazê-las bem feitas... contam-se pelos dedos de uma mão as que comi.
Oiço tantas vezes dizer que as novas técnicas morreram, algumas pessoas dizerem que passaram essa fase... Penso sempre que nem chegaram a ser exploradas... que quem passou a fase nunca as usou bem e apenas as usou por moda... que coisas com qualidade não podem ser feitas assim e os resultados só podiam ter sido decepcionantes.Elas permitem fazer coisas com uma qualidade e criatividade impossíveis sem elas. Mas requerem um enorme investimento de trabalho, de tempo, de criatividade... que poucas pessoas estão dispostas a fazer, ou percebem sequer que é fundamental fazê-lo se as decidem usar (porque não é obrigatório usá-las...).
Ali fazia-se, e a moda não ia passar. O que se expressa pode mudar, a forma de o fazer também, mas o trabalho que tinhamos visto ali referido era um trabalho coerente, sólido, profundo, uma busca da optimização da qualidade e de novas vias para expressar emoções. Isso não passa, evolui. Permite que se construa mais e melhor sobre esse trabalho. Ali não era uma moda, tudo tinha sentido, havia um objectivo e persistência. Deu para entender isto tudo e ter a certeza que tinha tomado a decisão certa em ir ali.
O Denis Martin concluíu dizendo que a cozinha para ele não era trabalho era uma paixão um divertimento! Via-se bem!
Estavamos com fome, cheios de curiosidade e muito bem dispostos... Era a hora de passar à mesa!
Um dia destes conto como foi...