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Lisboa fica mais pobre sem este Porto de Abrigo

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Hoje de tarde cruzei-me com a D. Alice, perguntei-lhe se estava tudo bem, respondeu-me:  “Vou andando filha, o problema são os olhos. E tu?”. Disse-lhe que estava boa, que tudo ia bem, pensei que invejava a energia dela com mais de 90 anos. Não lhe disse que há dois dias tinha passado na Rua dos Remolares, à Porta do Porto de Abrigo, e ele tinha fechado e que fiquei triste. Que me lembrei do tempo em que ela junto ao balcão da cozinha ia controlando todo o serviço da sala, do tempo em que ela mandava mais uma travessa com as excelentes batatas fritas para as minhas filhas. A minha filha mais velha ainda se lembra, apesar de terem passado mais de 20 anos. Há uns meses falou-lhe nisso. Ela ficou contente, disse que mandava sempre mais batatas para as crianças.

 

As voltas que o mundo dá... não sei se alguma vez por essa altura conversei com a D. Alice. Mais de 20 anos depois da última vez que a vi, voltei a encontrá-la, vejo-a todas as semanas. Por vezes conversamos um pouco. Da saúde... e do Porto de Abrigo. Outro dia até sugeriu que eu levasse dois patos que me ensinava a fazer o Pato com Azeitonas. “Mas filha... não tragas só um. Gasta-se muito gás, fazemos logo dois.”

 

 

Há restaurantes que marcam períodos da nossa vida. Na minha, um desses restaurantes é certamente o Porto de Abrigo. Um restaurante a fervilhar de gente, o ruído de fundo característico de um bom restaurante, gente muito interessante, muitas caras conhecidas assim que se entrava a porta, umas de amigos, outras de gente famosa. Foram muitos jantares em que a companhia e a conversa valiam por si, mas as caras familiares dos empregados, as vieiras gratinadas, o pato com azeitonas acompanhado com batatas fritas às rodelas, o polvo à Porto de Abrigo, o arroz de pato, o linguado e o ritual de o arranjarem ali junto à mesa... tornavam-nos jantares memoráveis.


Não posso deixar de sorrir quando me lembro de um jantar. No dia em que terminou o Festival de Jazz de Setúbal de 1979. Tinham sido 3 ou 4 dias daqueles que representam anos... em que nada é igual depois... e de repente toda a gente desapareceu no dia seguinte. Apareceu o FB, jornalista italiano que tinha vindo fazer a cobertura do festival e diz, "Gostei do Porto de Abrigo. Vamos jantar? Quero voltar a comer tudo antes de ir embora." Fomos. Ele queria mesmo voltar a comer tudo... e ia embora na manhã seguinte. Éramos dois, ele pediu 5 doses. O empregado perguntou se tínhamos a certeza. Sim, tínhamos. Debicámos um pouco de cada prato enquanto conversávamos sobre a comida e aqueles dias. O FB foi embora no dia seguinte. Nunca mais soube nada dele. Há tempos, por curiosidade, meti o nome dele no Google. O homem de barba e cabelo branco que apareceram, não me diziam nada... não o conseguia associar à pessoa que tinha jantado comigo no Porto de Abrigo. Como era possível? Parece que o jantar tinha sido há poucos dias...

 

Voltei ao Porto de Abrigo há poucos anos... já não era a mesma coisa. Disse-o à D. Alice, e falei-lhe de como tinha pena. Ela disse que também tinha pena de já lá não estar... Não lhe disse, mas pensei: Pois, é essa a razão de já não ser o mesmo.

 

Lisboa fica um pouco mais pobre sem o Porto de Abrigo, sem a vieira gratinada, o polvo à Porto de Abrigo, o pato com azeitonas, o arroz de pato... Mas não vou dizer à D, Alice que o restaurante fechou. Será que ela sabe? Vou só agradecer-lhe de novo tudo o que me proporcionou. A mim e a tanta gente!


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