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ComTradição polémico e Pierre Gagnaire contra-corrente

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Tenho gostado de ver os programas “ComTradição",  de Henrique Sá Pessoa (na foto), no 24Kitchen. Apesar do evidente talento do chefe do Alma como comunicador – e da sua já longa experiência na televisão – parece-me que só agora encontrou finalmente uma realização à altura, sem tempos mortos (os inenarráveis longos planos a cortar cebola ou mexer os tachos com a colher...), com bons ângulos de filmagem, uma montagem clara, ágil e inteligente. Falo, como é evidente, do ponto de vista de espectador interessado, não percebo nada de televisão. Achei também interessante o tema dos programas, que percorrem as regiões do país de acordo com receituário seleccionado a partir “Cozinha Tradicional Portuguesa”, de Maria de Lourdes Modesto, mas que introduzem, assumidamente, mudanças da responsabilidade de Sá Pessoa mantendo o “espírito” da receita original. E que estão ao nosso alcance, cozinheiros amadores, dando-nos vontade de experimentar em casa.

 

Segundo uma entrevista recente que deu ao crítico espanhol José Carlos Capel, no âmbito do San Sebastian Gastronomika Live (que pode ser vista aqui), Henrique Sá Pessoa diz que o programa tem sido criticado por vários espectadores, que lhe dizem que “as receitas não são assim”, não lhe valendo sequer o título do programa para o ilibar. Muito gostam em Portugal deste tipo de atitude de “eu é que sei como é”. Que sentido teria um chefe de 40 anos a repetir em 2020 as receitas que Maria de Lourdes Modesto apresentou como ninguém na RTP dos anos 60 e que estão consagradas num livro canónico, publicado em 1982?  Tanto mais que Sá Pessoa costuma evidenciar aquilo que está a mudar nas receitas (três por episódio) e deixa ao espectador a opção de fazer como no original. Pois eu acho que o programa está bem claro e interessante de seguir, do melhor que se tem feito em televisão com chefes portugueses, e até sou capaz de me arriscar em alguns cozinhados.

 

Por falar em Maria de Lourdes Modesto, que ontem completou 90 anos, conforme foi assinalado por vários artigos nos jornais, foi muito agradável o almoço de aniversário em sua casa, com pratos de um dos seus chefes preferidos, Vítor Sobral, precisamente um dos grandes inovadores da cozinha portuguesa, a par de Joaquim Figueiredo, outro dos preferidos da figura maior da nossa gastronomia. Será que ela teria apreciado e apoiado tanto o trabalho que eles desenvolveram na segunda metade dos anos 90, início de 2000, se eles se limitassem a seguir as receitas da “Cozinha Tradicional Portuguesa”? Ser mais papista do que a papisa nunca é aconselhável. 

 

San Sebastian Gastronomika Live. Outra sugestão para ver em casa são as entrevistas/conversas que o já referido  San Sebastian Gastronomika Live promoveu ao longo de 20 dias, com mais de 50 sessões com chefes renomados de Espanha, México, Brasil, França, Marrocos, Peru ou EUA e que agora estão aqui disponíveis. Portugal esteve representado apenas por Henrique Sá Pessoa, que falou sobretudo sobre a actual situação da nossa restauração. Aliás, a maneira como a pandemia está a afectar o sector foi assunto quase sempre abordado com outros participantes. Além da do chefe português, vi também a sessão de Ferran Adrià, sempre interessante, com uma resposta que me divertiu bastante quando lhe perguntaram se acha que no pós-pandemia iríamos assistir ao retorno ao tradicional nos restaurantes. “Bem”, disse o chefe catalão, “há 40 anos que me dizem isso todos os anos...”.  Especialmente para a ocasião, ele disponibilizou gratuitamente o seu livro "Qué es cocinar", que pode ser descarregado aqui.

 

Mas gostei em particular da conversa entre o grande chefe francês Pierre Gagnaire (na foto acima) e o crítico/blogger Philippe Regol, de origem francesa mas radicado em Barcelona há muitos anos, que pode ser vista aqui, com legendas em espanhol. Ficou-me sobretudo a posição contra-corrente de Gagnaire, que aos 70 anos já não tem que provar nada nem ir em modas, a afirmar que é cozinheiro e não “jardineiro” (nós, diríamos, se calhar, “hortelão” ou “agricultor”) e que não vai comprar e cultivar um terreno nos arredores de Paris -  cidade onde tem o seu restaurante três estrelas Michelin - só para dizer que tem cenouras sem pegada de carbono e que é “localvóro”. Prefere fazer o seu trabalho e comprar a quem tem bons produtos, mesmo que sejam alcachofras rosa italianas ou presunto pata negra espanhol, sem cair também na asneira de importar morangos ou cerejas do Chile quando não é época na Europa. Depois de realçar o erro em que incorreram os jovens cozinheiros das respectivas épocas ao seguirem cegamente a modas da Nouvelle Cuisine e da vanguarda espanhola, também agora defende o equilíbrio, frisando que os jovens de hoje não devem considerar que é preciso ser “jardineiro” para ser cozinheiro. Muito bem dito.


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