Os chefes que prepararam o memorável almoço de despedida. Joy Jung e Dieter Koschina, juntos, à direita
Não houve discursos, nem lágrimas, nem declarações solenes. O Tribute to Claudia, depois de dez edições, chegou ao fim neste domingo celebrando aquilo que a mim sempre mais me impressionou na equipa do Vila Joya, um profissionalismo extraordinário, uma busca da perfeição em cada detalhe de cada prato, uma preocupação permanente com a alegria de cada comensal, algo que - mais do que os muitos luxos que por lá há - me deixa deslumbrado. Joy Jung, da família proprietária deste hotel algarvio, que idealizou o evento para celebrar a memória da sua mãe Claudia, e o grande chefe Dieter Koschina, sempre calmo e discreto no meio da confusão dos dias de festival, mas também sempre com ar de quem se diverte com o convívio com os seus colegas, só podem estar orgulhosos com estes dez anos de um evento tão marcante. Recuso-me a pensar que, de alguma nova maneira, não lhe vão dar seguimento.
Quem achar que estou a exagerar na nota do profissionalismo devia ter estado sentado numa extensa mesa colocada na areia da praia do hotel, onde quase 70 pessoas tiveram a feliz ocasião de provar 11 pratos, sem contar aperitivos, sempre servidos a bom ritmo a nas temperaturas certas, com copos onde nunca faltaram os vinhos escolhidos por outro grande profissional da casa e figura essencial no êxito continuado do Tribute to Claudia, o escanção Arnaud Vallet.
O almoço foi servido a cerca de 70 pessoas na praia em frente ao Vila Joya, numa tarde esplendorosa
Antes dos sentarmos, de pé na areia, tudo a beber champagne Billecart-Salmon, Rosé e Blanc de Blancs Grand Cru, com aperitivos de Dieter Koschina, que também seria autor dos dois amuse-bouche, uma burrata com espinafre e sésamo e uma magnífica lula com gema confitada e molho mignonette. É incrível como se pode ser tão bom com ingredientes tão simples. A seguir, já com Soalheiro Primeiras Vinhas 2016, um lírio hiramasa australiano com daikon e abacate, pelo chefe austríaco Christian Marent (hotel Das Marent) e um salmão neo-zelandês Ora King, do mesmo fornecedor do peixe anterior, com ostra gillardeau escalfada, pepino e yuzu, do suíço Stefan Heilemann (Ecco Zurich, duas estrelas Michelin). Salmão assim, vale a pena.
Lírio hiramasa australiano, daikon, abacate
De longe, viria também o prato seguinte, que incluía a perfeição sob a forma de um lagostim da Islândia (foi o que me pareceu ouvir...) com maçã verde e um subtil e aromático caril de Madras. O autor, o alemão Peter Knogl, já veio várias vezes ao Tribute to Claudia e ainda bem que não faltou na despedida. Veio também da Suíça, onde conquistou em 2016 a terceira estrela para o seu Cheval Blanc, no histórico Grand Hotel Les Trois Rois, em Basileia.
Se todos os pratos fossem como este, a ideia de me tornar vegetariano não me pareceria tão estranha. É que a cebola assada em sal marinho, molho de sidra, caviar (pronto, não era totalmente vegetariano, mas ninguém reclamou), molho hollandaise com óleo de colza, tinha uma complexidade de sabores e de texturas extraordinária. O autor, o alemão Jens Rittmeyer, já andou muito por cá, tendo chefiado o São Gabriel, em Almancil, por algum tempo. Hoje, está no Kai3, no hotel Budersand, na ilha de Stylt, na Alemanha, onde, pelo que vejo através na Internet, tem precisamente apostado no protagonismo dos vegetais na sua cozinha. Faz muito bem.
Cebola assada em sal marinho, molho de sidra, caviar, molho hollandaise com óleo de colza
Quando o Tribute to Claudia se realizava no início de Janeiro, era mais as pretas, de Périgord, mas nesta época do ano foram as trufas brancas as escolhidas para acompanhar bacalhau fresco, beurre blanc, aipo e avelãs do Piemonte. Já se sabe que, para portugueses como eu, habituados à nossa cura, terá faltado um pouco mais de sal ao bacalhau, mas o conjunto estava esplêndido, harmonioso e envolvente. O alemão Sven Elverfeld, outra presença habitual no evento ao longo dos anos, foi o autor. Tem três estrelas no Aqua, no hotel Ritz- Carlton, em Wolfsburg, na Alemanha.
As trufas não podiam faltar no festival. Desta vez, brancas, com bacalhau fresco, beurre blanc, aipo e avelãs do Piemonte
Mas se falamos de harmonia e subtileza ninguém bate o holandês Jacob Jan Boerma cuja cozinha pude apreciar em 2009, quando fez o jantar mais memorável do evento desse ano – o único em que estive presente todos os dias, escrevendo, a convite da organização, para a revista oficial do festival. Tinha então duas estrelas, mas era fácil adivinhar que rapidamente chegaria à terceira no De Leest, em Zwoole, o que aconteceu em 2013. Rodovalho, com combava, aipo do bbq assado, vadouvan (um conjunto de especiarias que não conhecia) e algas foram, de novo, o prato para mim mais interessante desta tarde ao sol. A combinação do citrino com o toque da grelha do aipo, o sem número de aromas das especiarias, a presença do mar, o peixe perfeito, tudo se conjugava, nada se sobrepunha, nada desaparecia. Acho que é requerida uma precisão quase matemática para conseguir resultado tão exacto e delicioso.
Rodovalho, com combava, aipo do bbq assado, vadouvan e algas
Com aquela cenário de mar e sol, não me teria importado por terminar o almoço com mais peixes e mariscos, mas lá veio a carne, num prato de “queixo de porco” (nem sempre as traduções para português foram especialmente felizes neste festival internacional, mas, enfim, compreende-se) com aipo fermentado, da autoria do austríaco Peter Hagen, duas estrelas no Ammolite, na Alemanha. Por fim, outro “chefe hóspede” frequente do Vila Joya, o alemão de origem espanhola Juan Amador, três estrelas no Amador, em Langen, na Alemanha, a quem coube a primeira sobremesa: pêssego, espargos e natas ácidas, uma combinação bem audaciosa. O chefe só chegaria mais tarde, para, pelo que soube, dar azo à sua vertente de DJ na animada festa que se seguiu noite fora no restaurante de praia do hotel. Só ouvi ao longe. Por fim, Dieter Koschina com fava tonka, fisális e chocolate.
Ainda uma palavra para os vinhos que falta mencionar e que foram servidos ao longo deste fabuloso almoço de despedida: Herdade da Calada Baron de B Reserva 2016, Château Minuty 281 2016 (Côtes de Provence), Poeira 2013, Machherndl Riesling Kollmutz, Reserve 2014 (Wachau) e Excellent Casa Horácio Simões, Superior Moscatel Roxo DOC.
Fiquei contente por ver o Tribute to Claudia terminar assim, realçando os aspectos mais positivos que o caracterizaram. Tenho pena que acabe, mas compreendo e admiro a coragem e a lucidez de pôr fim a um evento que tem sido imitado por todo o lado e que precisa de ser reinventado (assim o espero). De facto, o que não faltam hoje são eventos que reúnem chefes de Portugal e do estrangeiro a apresentarem jantares a não sei quantas “mãos”, apenas acessíveis a convidados e aos “happy few” que os podem pagar, numa banalização de conceito que já cansa.
O Tribute to Claudia foi, sem dúvida, pioneiro neste tipo de evento e fê-lo em grande estilo. Julgo que foi especialmente útil para os chefes portugueses – embora só em 2009 tenham tido o primeiro português a participar, Albano Lourenço, então na Quinta das Lágrimas e hoje também no Algarve, no Vistas, no hotel Monte Rei, onde está a desenvolver um excelente trabalho, como pude comprovar neste Verão. Mais tarde, haveria não só “noites portuguesas”, mas também muitos chefes e membros das equipas dos nossos restaurantes iam aprender com Koschina e os seus ilustres convidados estrangeiros durante o evento.
Numa das últimas edições, a "Noite Portuguesa" reuniu nomes como, da esq. para a direita, André Silva, Vítor Matos, Miguel Laffan, Miguel Rocha Vieira, Pedro Lemos, Benoît Sinthon, Ricardo Costa, Henrique Leis, José Avillez, Leonel Pereira e o anfitrião Dieter Koschina
Por outro lado, creio que o Vila Joya também se abriu ao público português. Para se ter uma ideia, quando me iniciei nestas lides, no final dos anos 90, eram raríssimos os portugueses que lá iam. Lembro-me de perguntar a um experiente jornalista da área se conhecia o lugar e de ele me responder que não, que “aquilo era de alemães só para clientes estrangeiros hospedados no hotel, quase todos alemães” e eles nem aceitariam reservas de portugueses...
Julgo que era um exagero, mas a verdade é que o Vila Joya e outros restaurantes algarvios chefiados por estrangeiros não interessavam então aos gastrónomos portugueses, por muitas estrelas Michelin que ostentassem, e a muitos deles desagradava-lhes a ideia de irem a locais onde se sentiam intrusos, onde nem sequer eram atendidos por pessoas que falassem a nossa língua. Hoje, tudo mudou, felizmente, e parece-me que o interesse é recíproco entre esses restaurantes/chefes e clientes portugueses, com uma ou outra excepção.
O chefe de sala Paulo Luz, ao centro, orienta a sua equipa. Sem eles, o festival não seria o mesmo
Não acompanhei os primeiros anos do Tribute to Claudia, mas, depois de 2009, fui lá quase todos os anos, geralmente só num dia ou dois. Sempre fui muitíssimo bem acolhido e ficam as melhores lembranças, quer da cozinha quer da sala, onde há profissionais igualmente excepcionais, como o chefe de sala Paulo Luz, para referir alguém que sempre me lembro de ver por lá. E também gostaria de referir Matteo Ferrantino, o italiano que durante muitos anos foi o braço-direito de Koschina, até ir para Hamburgo chefiar o Bianc, e que creio que muito contribuiu para uma equipa de apoio que garantia que cada chefe, vindo de onde viesse, pudesse trabalhar com a qualidade pretendida.
Tal como tudo na vida, o Tribute to Claudia tinha que acabar um dia, mas parece-me que o fez da melhor maneira, com alegria, bom gosto, profissionalismo e uma grande cozinha. Seria uma pena, no entanto, que este grande trabalho não tivesse continuidade, adoptando novas fórmulas, com a criatividade que sempre caracterizou a casa. Acho que todos os gastrónomos portugueses, eu incluído, gostaríamos de voltar a ter ocasião de agradecer a Joy Jung e a Dieter Koschina.