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Offal - o termo significa literalmente "off fall", ou seja as partes que caem de uma carcaça quando é desmanchada. Originalmente a palavra aplicava-se principalmente às entranhas. Agora cobre estas, incluindo coração, fígado, pulmões e todos os órgãos abdominais, e também as extremidades: caudas, pés e cabeças, incluindo o cérebro e língua.* Em português, é difícil traduzir, usamos miudezas, mas temos que concordar que não é um bom termo para dar nome a um jantar. O desafio a que o Pedro Almeida e a sua equipa se propuseram foi de organizar um jantar usando estas partes menos nobres dos animais. Escolheram chamar à refeição “Offal Dinner” até pela semelhança sonora com “Awful Dinner”, o que possivelmente será o que um jantar como este é para muita gente. De facto, se analisarmos o nosso receituário popular, os exemplos do uso das ditas miudezas são abundantes, sempre se comeram todas as partes dos animais que se matavam. No entanto, mais recentemente, e sobretudo num contexto urbano, em que podemos escolher as partes do animal que adquirimos, foi-se perdendo o hábito de consumir “offal”. E se algumas partes ainda se consomem, outras estão quase ausentes dos nossos pratos, até porque lembram demasiado a sua origem, coisa que às vezes preferimos esquecer.
Na generalidade são partes muito nutritivas, algumas muito ricas em proteínas, mas cujo gosto e textura depende muito do órgão e animal de onde provêm. Algumas partes têm sabores fortes, outras quase neutros, mas em geral têm texturas características, estaladiça nuns casos, gelatinosa noutros. E esta é uma textura muito apreciada no oriente, mas não tanto no mundo ocidental. De facto alguns dos comentários à mesa referiam-se a uma certa repulsa causada por alimentos gelatinosos.
Quanto a mim achei o desafio para participar no “Offal Dinner” no restaurante Midori irrecusável. Deixou-me logo em grande expectativa. Até porque, por razões várias, sempre, e em particular em criança, comi bastante estas partes dos animais e em grande variedade. Talvez por isso as aprecie bastante. Depois, as experiências que tenho tido com a cozinha do Pedro Almeida têm sido bastante interessantes, e sempre num crescendo, e tinha uma enorme curiosidade de ver como ia apresentar estas partes dos animais, num contexto base de cozinha asiática, com as influências da cozinha e sabores com que cresceu (a nossa cozinha e sabores).
No início da refeição foi-nos dito que tinham decidido levar o desafio ainda mais longe e não servir vinho à refeição, mas combinar cada prato com uma bebida ou um cocktail diferente. A sequência da refeição foi a seguinte:
Saké aromatizado com gengibre
Tiradito de tamboril com seus restos e citrinos
Saké aromatizado com gari (o pickle de gengibre usado no sushi) o que lhe dava um aroma de certa forma floral, complementado com cardamomo, pimenta rosa e zimbro
Tamboril muito fresco, acompanhado pelas suas guelras fritas (textura muito estaladiça), a pele cozinhada num dashi (caldo japonês com uma forte componente umami), ficando assim muito saborosa e com uma textura bastante gelatinosa, molho do fígado e, para conferir frescura, laranja sanguínea, tangerina, um ligeiro toque de bergamota e yuzu e folhas de capuchinha.
Muito bom e fresco, um começo suave que aliviou algumas ansiedades e deixou a generalidade dos presentes mais confiantes para os restantes desafios.
Gin Mare
Onigiri de língua de vaca com tomate e alecrim
Um gin obtido, para além dos ingredientes tradicionais, com azeitona, manjericão, tomilho e alecrim, que lhe conferem um aroma muito mediterrânico. Destaca-se o alecrim, aroma este que fazia a ponte para o prato, também com sabores mediterrânicos e aromatizado com alecrim.
O onigiri é umbolinho de aroz japonês, geralmente em forma de triângulo, com vários tipos de recheio e envolto por uma folha de nori. Neste caso o recheio era de língua de vaca estufada e, em vez da alga nori, os bolinhos estavam envolvidos com um filme de tomate. O prato era complementado com tomate desidratado e molho de tomate. Uma estética muito oriental, um sabor muito familiar, que nos transportava para a infância.
Estávamos na nossa área de conforto… o que se seguiria? Para mim o prato mais difícil.
Sumo de arando com wasabi e hortelã
Tataki de coração com umeboshi
Um cocktail não alcoólico que foi bastante apreciado. Um porto seguro que nos aliviava da “dureza” do que veio de seguida…
Coração de porco, cozinhado a baixa temperatura e bem rosado, com um forte sabor a ferro (bem característico do sangue) e beterraba – em caviar e em cubos - com uma vinagrete salgada e ácida de umeboshi (conserva de ameixa). E como não há coração sem sangue, ele lá estava no prato (mas, felizmente, falso! um sumo de beterraba).
Depois desta dose de “violência” era essencial um momento de calma, de suavidade. Foi o que se seguiu.
Saké aromatizado com manjericão e alga kombu
Kinuta de bexiga de bacalhau, língua e outros sabores a mar
Kinuta é o nome de um rolo sem arroz, este tinha por fora pepino e era recheado com lírio e língua de bacalhau em tempura, como acompanhamento tinha estaladiços de sames (bexiga natatória do bacalhau). Tudo isto complementado com sunomono (conserva) de wakame e uma espuma de kombu para conferir um toque umami, complementado pelo toque umami também presente na bebida. Um prato muito suave, uma suavidade que soube muito bem…
Havia apenas uma parte do animal que eu nunca tinha comido e que esperava ansiosamente. Veio a seguir, apresentada de uma forma muito “natural” e óbvia. Um prato de que gostei muito.
Vodka Grey Goose La Poire, na pipeta uma limonada fresca
Gyoza de caril de cristas de galo
A bebida com um forte sabor a pêra acompanhava uma gyosa, cozinhada primeiro a vapor e depois no teppan (chapa), recheada com um verdadeiro caril japonês de galo com arroz. Sobre ela legumes e a crista do galo, cozinhada em caril, com uma textura bastante gelatinosa, tudo complementado com um molho muito ácido com óleo de sésamo. Um prato excelente.
Saké Premium
Tempura de patas de frango com milho
O saké servido num "copo" de pepino acompanhava as patas de frango, que foram inicialmente cozinhadas num dashi aromatizado com pipocas e depois fritas – uma tempura recoberta de pipocas. Acompanhavam-nas uns fragmentos de uns estaladiços de milho e o molho característico da tempura (tentsuyu) aromatizado com pipocas e milho.
Gosto muito de patas de frango, e como-as frequentemente na canja ou em restaurantes chineses, gosto particularmente da textura gelatinosa. Aqui esta perdia-se um bocado com a cobertura estaladiça. Gostei de experimentar esta versão, foi uma forma completamente nova e inesperada de comer patas de frango. E continuámos nas texturas gelatinosas...
Chá de limão fresco
Yakitori de tendão com maçã e azeitona
O tendão foi bem cozinhado e coberto com uma crosta de panko e mostarda. Foi servido com um puré de maçã salpicado de azeitonas.
Sumo de toranja com uma bola de melancia
Linguado com rim e teriaki, crocante de pele e suriyaki de cascas
Os rins foram cozinhados, juntamente com cogumelos shiitake e várias cascas de legumes (offal vegetal), em sukiyaki (num fondue japonês, num caldo com molho de soja e mirim). Em seguida legumes, cogumelos e cascas foram envolvidos com véu de porco (a gordura rendilhada que cobre os órgãos internos) e servidos com o filete de linguado, um pouco do caldo do sukiyaki e a pele do linguado crocante.
Chegando às sobremesas o desafio, na mesma linha era um pouco mais difícil, foi assim ultrapassado recorrendo a alguma imaginação.
Caroço e casca de banana com pimenta sancho.
Uma ganache flexível de chocolate. Banana caramelizada e uma falsa casca confeccionada com puré de banana.
Um desfio muito interessante, as "estrelas da refeição" foram utilizadas de forma bastante original, o resultado promoveu muita interacção entre os participantes no jantar. Alguns pratos não regressaram vazios, mas em geral todos tentaram ultrapassar as barreiras e os preconceitos.
O acompanhamento das bebidas foi também um excelente desafio. Todas elas boas, combinações com os pratos que nem sempre foram consensuais, mas que promoveram a discussão à mesa. A maior dificuldade, segundo o Pedro Almeida, foi contudo conseguir reunir todos os estranhos ingredientes necessários. Alguns dos quais exigiram pedidos de autorizações especiais, como foi o caso das cristas de galo.
Parabéns ao Penha Longa Resort por permitir e incentivar estas aventuras gastronómicas e ao Pedro Almeida e toda a sua equipa pelo desafio a que se propuseram e a forma como o ultrapassaram. Um desafio original e uma aposta ganha.
Tentad@? Este “Offal Dinner” vai ser repetido uma única vez, no dia 27 no restaurante Midori - Penha Longa Resort.
* Alan Davidson, The Oxford Companion to Food, Oxford University Press
Contactos:
Midori - Penha Longa Resort - Estrada da Lagoa Azul Sintra - Linhó 2714 - 511 Portugal
T: +35 1 21 924 9011
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