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A Ribeira esteve cá em casa

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Texto de Rafael Tonon (autor convidado)* 

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É uma sensação estranha estar trancado em casa em pleno 25 de Abril. Até mesmo para um brasileiro, a noção de não poder ir às ruas celebrar a liberdade soa antagónica — e até um bocado angustiante, para ser sincero. Era um sábado levemente nublado no Porto, daqueles em que facilmente sairíamos para caminhar, desceríamos a Avenida dos Aliados, continuaríamos pela Rua das Flores a desviar dos turistas e finalmente alcançaríamos a Ribeira, para dar de encontro com o Douro. Algo que sempre me põe um sorriso no rosto. 

 

 

Sem poder ir lá para fora, só me veio uma ideia para o almoço: trazer a Ribeira cá dentro. Era a chance de simular um pouco de normalidade nesses tempos anormais. Como a artéria turística do Porto, a zona da Ribeira não é lá muito generosa em bons restaurantes: a maioria deles criados como armadilhas para os bolsos cheios dos turistas. Mas há quem tenha feito dali uma referência na restauração — e uma boa desculpa para nos sentarmos a comer uns peixes e mariscos com a vista para o rio sempre imponente.

 

António Coelho foi o mentor de três restaurantes bem diferentes entre si, mas muito parecidos no sentido de oferecer boa comida e serviço acolhedor.  A Adega São Nicolau, a Taberna dos Mercadores (meu preferido) e o Terreiro, abertos por ele, estão distantes por apenas alguns passos. Mas bastante próximos do ideal de comida reconfortante que eu precisava naquele sábado. Desde o falecimento do empresário da restauração, a filha Renata é quem está à frente dos negócios. E quem tenta sobreviver a portas fechadas nesses tempos de pandemia.

 

Como outros restaurantes da cidade — que ainda não despertou propriamente para a cena das entregas ao domicílio —, ela tem apostado nos serviços de take away e delivery. Numa só cozinha (a do Terreiro) e com equipa reduzida, as receitas mais tradicionais das três casas seguem a toda, prontas para chegarem às casas dos saudosos clientes. “Os pedidos vão devagarinho, mas a crescer. E a acompanhar igualmente a nossa adaptação a esta dinâmica”, conta Renata. 

 

Estão na ementa, que muda com frequência, os filetes de polvo com arroz e a língua de vitela arouquesa estufada da Adega; a famosa francesinha e o peixe galo com açorda do Terreiro; as costeletinhas de borrego e os fígados de vitela da Taberna. “As cozinhas sempre se complementaram em termos de matéria prima, influência e produção. Todos os cozinheiros passaram pelas três”, diz Renata. 

 

Aproveitei a rara oportunidade da miscelânea de opções e pedi a vitela assada no tacho (da Adega) e os filetes de pescada com arroz de berbigão (do Terreiro) — tinha saudade de arroz caldoso, de comer à portuguesa. Para o tempo de aquecer a comida no micro-ondas — caso fosse preciso —, pedi ainda os bolinhos de bacalhau e um quindim de sobremesa, para lembrar um pouco do Brasil. Tudo a 34,50 euros, para duas pessoas. 

 

Se o atendimento de um restaurante começa à porta, no delivery ele se inicia na chamada: é importante que quem atende seja cordial, para não estragar o apetite. O meu só fez aumentar. Marcamos o horário e, pontualmente, o entregador estava à minha porta. As embalagens pareciam embrulhadas pela mãe, tamanho o cuidado, tudo devidamente envolvido em folha de alumínio, para preservar ao máximo o calor. Não precisavam sequer ser aquecidos. 

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Tão logo tirei as embalagens do saco, abri logo a dos bolinhos (ou pastéis de bacalhau, como dizem no Sul) para abocanhar um, enquanto montava a mesa: sequinho e macio, resultado de uma fritura bem cuidada. Pouco se fala, mas as frituras exigem atenção total de seus “operadores”: temperatura, imersão, timing. Em questão de segundos, tudo pode desandar. Os filetes de pescada envolvidos em polme tiveram a mesma sorte e ainda bem,  contrariando a convenção de que tudo o que é frito viaja mal — já que o calor pode aumentar a humidade, alterando a textura, devastando crocâncias.

 

O contraponto do peixe era o arroz caldoso, para mim a quintessência da comida portuguesa — quem precisa de risotto quando se tem arroz malandro? O berbigão sabia a mar, e a maresia me trouxe a Ribeira de volta em poucas garfadas. Ironicamente, faltou-lhe um pouco de sal, um tantinho de pujança, mas nada que comprometeu o conjunto. 

 

Todavia o melhor do almoço foi mesmo a vitela assada no tacho, a lume brando. Jarrete e cachaço a desmanchar ao toque do garfo, o molho saboroso, denso, colagénio a grudar os lábios. As batatas fizeram-lhe boa companhia: gordas, douradas, apetitosas.

 

Ao fim da refeição, outro sabor de saudade: essa de mais longe. O quindim mescla o melhor da doçaria tradicional portuguesa com a ousadia da culinária brasileira que, na falta de ingredientes exigidos, buscava o que tinha mesmo ali, na mão. Calhou de ser o coco, em surpreendente combinação com as gemas e o açúcar. Aqui, em textura aveludada, doce na medida certa. 

 

Viajei, ida e volta, para a mesa da minha mãe e, por alguns minutos, quase esqueci que estava confinado, sem poder ver os portugueses bradarem a sua devida liberdade. Comida também é para isto: nos tirar o senso de realidade e nos transportar para um outro lugar, até que a última colherada acabe com toda a nossa ilusão. 

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bolinhos de bacalhau 

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filetes de pescada com arroz

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vitela assada no tacho

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O quindim, que mescla o melhor da doçaria tradicional portuguesa com a ousadia da culinária brasileira

 

 

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Encomendas pelo telefone 22 201 1955., de quartas a domingos, das 12h às 14h30 e das 19h às 21h. Entregas no Porto sem taxas. Em Leça da Palmeira ou em Vila Nova de Gaia, taxas de 3 euros podem ser aplicadas. 

 

* Sobre o autor convidado:

Nascido em Campinas, estado de São Paulo, Brasil, em 1982, Rafael Tonon é jornalista especializado em gastronomia. Trabalhou como editor na Abril já colaborou para veículos como GQ, Vogue, Elle, entre outros.  É correspondente do Eater (maior portal de gastronomia dos EUA), para onde acaba de escrever um guia sobre o Porto, cidade onde reside actualmente. Em Portugal, é colaborador do Expresso e do Público.

 

Fotos: a de abertura foi retirada do Instagram da Taberna dos Mercadores; as restantes são de Rafael Tonon

 

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